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pasquale cipro neto

 

11/10/2012 - 03h00

"Tecnologia hidrofóbica"

No rádio, uma peça publicitária anuncia características da nova fórmula de uma famosa cola, agora "com tecnologia hidrofóbica". O caro leitor sabe o que pode ser isso? E o grande público? Saberá decifrar de imediato o que vem a ser "hidrofóbica"?

Quando ouvi a tal peça, lembrei-me de um fato que ocorreu comigo e de uma piada. Começo pela piada. Um rapaz de poucas letras foi ao médico, que lhe passou uma receita. Ao sair do consultório, o jovem foi a uma farmácia e comprou o remédio. Em casa, chamou a mulher, também pouco letrada, e mostrou-lhe a caixinha, que foi imediatamente aberta. Os dois se surpreenderam ao ver o remédio, muito "comprido". Era um supositório.

"Como é que isso vai passar na garganta, mulher?", perguntou ele. "Sei não", disse ela. "É melhor voltar lá." O rapaz voltou duas vezes ao consultório. Na primeira, o médico lhe disse que o remédio deveria ser posto "no reto"; na segunda, "no ânus". Quando a mulher lhe sugeriu que voltasse lá pela terceira vez... É claro que vou poupar o respeitável público do que as aspas ocultam. O fato é que a piada mostra muito bem o que ocorre quando o emissor não usa a linguagem adequada ao interlocutor.

O que ocorreu comigo revela procedimento semelhante. Há mais de 20 anos, um dos meus filhos foi submetido a uma cirurgia. Conversei com o anestesista, que me falou do tipo de anestésico etc. No fim da conversa, disse-me ele, ipsis verbis: "Não se preocupe. O seu filho é uma criança eutrófica". O que eu lhe disse em seguida o fez deduzir que eu entendera o que ele dissera. "O senhor é colega?", perguntou-me ele. "Não; sou professor de português."

Ora, um professor de português talvez tenha obrigação de saber o que é "uma criança eutrófica" (bem nutrida, bem alimentada, saudável etc.). "Eutrófica" resulta da soma de dois elementos gregos: "eu-", que significa "bem", "bom", e "trófico/a", que é relativo à nutrição. Mas e quem não é médico ou professor de português? A linguagem empregada por aquele médico é adequada a qualquer interlocutor ou situação?

Posto isso, voltemos à peça publicitária da cola. O que será a tal "tecnologia hidrofóbica"? Voltemos ao grego, de onde vêm os dois elementos que formam o vocábulo ("hidro", que significa "água", "líquido", e "fobia", que significa "aversão", "medo").

Quando se conhece o significado dos elementos que formam a palavra "hidrofóbico", não é difícil deduzir que a tal cola repele a água, não se dissolve nela. De novo, cabe a pergunta sobre a adequação da linguagem. Note, caro leitor, que de fato estou perguntando e não afirmando. Há bons argumentos para os dois lados. Quem defende a presença do vocábulo na peça publicitária pode dizer que se trata de termo específico e que o ouvinte de cultura e raciocínio razoáveis rapidamente deduz o que significa o vocábulo, formado por elementos cuja ocorrência na linguagem do dia a dia não é tão rara. De fato, mesmo o elemento mais raro da dupla ("fóbica") tem incidência bem distante de zero.

A turma do outro lado pode dizer que a linguagem publicitária deve ter alcance imediato, que o público é heterogêneo e que, por isso, o vocabulário não pode ser requintado etc.

O fato é que o episódio serve para trazer à tona algo que já comentei algumas vezes: ninguém morre por aprender a decompor as palavras e, por associação, entender o significado delas. Daí para justificar o emprego de "hidrofóbica" numa peça publicitária são outros quinhentos. Como já afirmei, há bons argumentos para os dois lados. E você, caro leitor, de que lado fica? É isso.

pasquale cipro neto

Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".

 

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