Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
'Nenhum dos senhores mandam'
Dá-lhe, Tia Eron! Quem disse que ela não resolveria, que tinha sido abduzida? Na terça-feira, na sessão do Conselho de Ética (?!) da Câmara, Tia Eron falou e disse. Citou Umberto Eco, Darcy Ribeiro e Platão, usou palavras chatinhas, típicas da linguagem acadêmica ("ressignificar" é uma delas), pintou e bordou.
E tropeçou na gramática. Pôs no singular o que seria plural ("É nela que mora os valores") e vice-versa, errou a conjugação do verbo "ver" ("Quando ver as manchetes") etc.
O discurso da deputada mostra bem a que nos pode levar a emoção quando falamos de improviso, "ao vivo". Talvez Eron escorregasse menos se escrevesse os seus discursos.
Um dos tropeços ocorreu quando ela disse isto: "Não mandam nessa nega aqui. Nenhum dos senhores mandam". Muito comum na linguagem oral (e não raro também na escrita), o desvio presente na construção empregada por Tia Eron é clássico: a atração exercida pelo elemento mais próximo do verbo faz o falante flexionar esse verbo ("mandam", no caso) em concordância com esse elemento ("senhores").
Nesse caso, a concordância não se faz com "senhores"; faz-se com "nenhum": "Nenhum dos senhores manda". Isso ocorre quando o núcleo do sujeito é um termo como "nenhum", "algum", "ninguém" etc.: "Algum de vocês manda em mim?"
Frequente em provas e concursos que vão além da mera pergunta sobre certo/errado, esse desvio exige observação atenta a respeito do porquê da sua ocorrência, o que significa que o candidato deve ser capaz de explicar o motivo do erro.
Vale a pena incluir nessa lista casos como o do sujeito formado por núcleo singular seguido de vários adjuntos no plural, o que torna a flexão do verbo no plural uma tentação quase irresistível: "O custo das matérias-primas empregadas nos produtos importados mais consumidos subiram muito neste ano".
O que foi que subiu? Foi o custo, não? Bem, se foi o custo, ele, o custo, subiu, ainda que depois dessa palavrinha venha uma enorme fileira de penduricalhos no plural: "O custo das matérias-primas empregadas nos produtos importados mais consumidos subiu muito...".
E que ninguém inclua nessa lista os casos em que o núcleo do sujeito é palavra que dá noção de agrupamento, de coletivo etc., como "maioria", "parte", "grupo", "bando" etc. Nesses casos, quando há "penduricalhos", a concordância depende daquilo que se quer colocar em evidência. Em "Na hora de votar, a maioria dos deputados pronunciou discursos inacreditavelmente ridículos", a concordância de "pronunciou" com "maioria" põe em evidência o grupo, o conjunto (representado por "maioria" nesse caso).
Em "Na hora de votar, a maioria dos deputados pronunciaram discursos...", a concordância de "pronunciaram" com "deputados" (corretíssima, diga-se) põe em evidência quem forma o grupo, o conjunto ("deputados", nesse caso).
É claro que, se uma palavra como "maioria", "grupo", "parte" etc. não é seguida de penduricalhos, o verbo fica no singular: "Na hora de votar, a maioria pronunciou...".
Antes que algum chato de plantão diga que nunca me manifestei sobre as patacoadas verbais da presidente afastada, informo que me parece dispensável explicar o autoexplicável ("pessoa individual" e afins).
O que importa é que Tia Eron votou "errado", mas votou certo. É isso.
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