Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.
O olho preguiçoso que ignora os refugiados
No documentário Fogo no Mar (Fuocoammare), que venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim e acaba de estrear no Brasil, o menininho italiano Samuele descobre que tem um "olho preguiçoso" e precisa usar um tampão para "re-ensinar" seu cérebro a enxergar.
Samuele vive na ilha de Lampedusa, porta de entrada de milhares de refugiados para o sonho europeu. Ele passa seu tempo atirando com um estilingue contra ninhos de passarinho, aprendendo a enfrentar o mar e seu futuro como pescador e usando rifles imaginários.
Em nenhum momento ele se dá conta da tragédia que se desenrola na ilha.
Filippo Monteforte-25.out.13/AFP | ||
Imigrantes africanos retirados do mar pela Marinha italiana após naufrágio aguardam desembarque na ilha de Lampedusa, no sul da Itália |
Só nos últimos sete dias, 113 pessoas morreram afogadas tentando cruzar da Líbia até Lampedusa. Mulheres, homens e crianças. Um bebê recém-nascido.
Desde o início do ano, foram 976 mortos nessa rota (28.563 conseguiram chegar).
Para a Itália, vão principalmente refugiados da Nigéria, que sofrem com o Boko Haram, milícia extremista que declarou lealdade ao Estado Islâmico e se notabilizou por sequestrar meninas e transformá-las em mulheres-bomba. Chegam também refugiados de Gâmbia, Guiné, Senegal, Costa do Marfim, Somália e Mali.
Mas essa é apenas uma das rotas para entrar na Europa.
Em 2016, outras 154.862 pessoas chegaram à Grécia vindas da Turquia - e 376 morreram tentando. A grande maioria veio da Síria, seguidos de Afeganistão, Iraque, Paquistão e Irã.
No dia 7 de março, a União Europeia fechou um acordo com a Turquia para "resolver" seu problema de refugiados. Era o chamado "um entra, um sai": para cada sírio devolvido pela Grécia à Turquia, a UE se compromete a receber um sírio que esteja esperando na Turquia.
Depois do acordo, o fluxo de refugiados da Turquia para a Grécia praticamente secou. A média de 2056 pessoas chegando por dia em janeiro caiu para 112 em abril.
Mas como alertaram diversas ONGs, o acordo não resolve o problema.
A média de refugiados chegando diariamente à Itália, vindos da Líbia, subiu de 176 em janeiro para 303 em abril. Em que pese a sazonalidade (os refugiados preferem atravessar nos meses mais quentes), os números provam que o tráfico de pessoas continua em alta.
Por enquanto, como aponta a Organização Internacional para Migrações (IOM, na sigla em inglês), o fechamento da rota dos Balcãs pelo acordo UE-Turquia ainda não teve um grande efeito na rota da Líbia - por lá continuam chegando africanos, e não sírios, iraquianos e afegão.
Mas os traficantes de pessoas são ardilosos e já se posicionam.
"Ainda não há indícios de que as pessoas estão indo para a Líbia, mas dois anos atrás, 42 mil sírios usaram essa rota, e tudo indica que eles irão recorrer novamente a esse caminho", disse Joel Millman, um porta-voz da IOM.
Europeus, americanos, brasileiros: está na hora de nós tirarmos o tampão do olho e começarmos a enxergar.
Não adianta bloquear a entrada dos imigrantes ou devolvê-los para a Turquia se não forem resolvidos os conflitos e a pobreza na Síria, Nigéria, Iraque, Afeganistão.
Parece óbvio, não?
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