Patrícia Campos Mello

Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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Patrícia Campos Mello

Jane Doe faz um aborto, apesar de Trump

"Sou uma menina de 17 anos que veio para este país em busca de uma vida melhor. Minha jornada não foi fácil, mas eu vim com a esperança de construir uma vida de que eu me orgulhe. Meu sonho é estudar enfermagem e, um dia cuidar de idosos."

"Quando eu fui detida, colocaram-me em um abrigo para crianças. Lá, me disseram que eu estava grávida. Eu soube imediatamente o que era o melhor para mim, como eu sei agora —eu não estou pronta para ser mãe."

Em setembro deste ano, a adolescente Jane Doe, 17, atravessou a pé a fronteira do México e entrou ilegalmente nos Estados Unidos, sozinha.

Jane Doe não é seu nome real —é o nome comumente usado quando não se pode revelar a identidade da pessoa por ela ser menor de 18 anos ou por outro motivo.

Jane Doe é um dos cerca de 40 mil menores desacompanhados que entram ilegalmente por ano nos EUA. A maioria está fugindo da pobreza e da violência de gangues em Honduras, Guatemala e El Salvador.

Após ser detida e passar por exames médicos, Jane descobriu que estava grávida de 11 semanas e decidiu fazer um aborto.

Mas uma política adotada em março pelo Escritório de Reassentamento de Refugiados, que supervisiona os menores detidos após cruzarem ilegalmente a fronteira dos EUA sem a companhia de um parente adulto, não permite que essas adolescentes deixem o centro de detenção para fazer aborto.

"Eles me obrigaram a ir a um médico que tentou me convencer a não fazer aborto e me forçou a olhar o ultrassom", disse a adolescente. "Pessoas que eu nem conheço estão tentando me fazer mudar de ideia. Eu tomei a decisão e isso é entre mim e Deus. Ao longo desse tempo, eu nunca mudei de opinião. Ninguém deveria ser constrangido por tomar a decisão certa, por conta própria. "

O aborto foi legalizado nos Estados Unidos com a decisão da Suprema Corte do caso Roe v Wade, de 1973. Mas muitos Estados impõem restrições específicas e o Texas tem uma das legislações mais duras nessa área.

É obrigatório que a gestante faça um ultrassom e ouça do médico a descrição do feto, e menores precisam de autorização dos pais. O aborto é proibido depois das 20 semanas, a não ser em casos de emergência médica.

Jane não queria voltar para seu país, de onde fugiu por sofrer violência física. Lá (a Justiça não revelou qual é o país centro-americano), o aborto é ilegal. Quando seus pais descobriram que a irmã mais velha de Jane estava grávida, eles a espancaram para induzir um aborto.

Quando Jane obteve autorização legal para fazer o aborto nos EUA, o governo a impediu de deixar o abrigo para fazer o procedimento.

E aí se iniciou uma batalha legal, enquanto a gravidez ia avançando e aumentava o perigo de se submeter ao procedimento.

Advogados da ACLU (a organização União das Liberdades Civis Americanas) assumiram a defesa da adolescente.

Depois de um mês, finalmente, uma juíza de Washington DC determinou que o governo deveria deixar que a adolescente saísse do abrigo para se submeter ao aborto "prontamente e sem atraso".

Nesta quarta-feira (25), de manhã, Jane conseguiu fazer um aborto. Seus guardiães a levaram a uma clínica onde ela fez o procedimento de forma legal, e posteriormente voltou para o abrigo onde está detida. Ela estava com mais de 15 semanas de gestação.

O governo argumentou na Justiça que não estava negando a Jane direito ao aborto, ao não permitir que ela saísse do abrigo. Eles simplesmente não queriam "facilitar" o aborto.

Segundo o "New York Times", Eric Hargan, secretário interino de Saúde, disse que o governo passou a impedir menores grávidas de saírem dos abrigos para se submeterem a aborto porque quer "promover o nascimento de bebês e a vida fetal".

O secretário de Justiça do Texas, Ken Paxton, prepara uma moção, ao lado de secretários de outros 11 Estados, para defender a posição do governo Trump.

Ele lamentou a decisão da juíza de Washington de permitir a Jane que fizesse o aborto.

"Essa decisão não apenas custou uma vida, ela abre caminho para que qualquer um fora dos EUA entre ilegalmente e faça um aborto", disse Paxton, em comunicado. "A perda de uma vida humana inocente no dia de hoje é trágica."

Será que Paxton e todos os críticos do direito ao aborto teriam a mesma preocupação com a "vida humana inocente" de Jane, se ela fosse deportada por ser imigrante ilegal?

Para esse pessoal, uma vida humana inocente não é igual a outra vida humana inocente.

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