Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA e escreve sobre política e economia internacional. Escreve às sextas-feiras.
Bill Clinton e Gloria Steinem, o assediador e a feminista, 20 anos depois
Se um político defende os direitos das mulheres, mas, ao mesmo tempo, é acusado de assediar várias delas, as feministas devem pedir que ele renuncie? "Não, de jeito nenhum."
Esse mesmo político foi acusado por uma funcionária pública de tê-la chamado para seu quarto de hotel, tentar beijá-la, "abaixar as calças e a cueca, expor seu pênis (que estava ereto)" e pedir que ela beijasse seu membro. E então, isso é assédio sexual? " Não. Ele é acusado de dar em cima de uma apoiadora de forma idiota e impulsiva. Mas ela o afastou e isso nunca mais aconteceu. Ou seja, ele aceitou não como resposta."
Esse mesmo sujeito é acusado por uma voluntária de sua campanha de tê-la "beijado e bolinado" e colocado a mão dela na braguilha dele, no palácio presidencial. "Ele parece ter dado em cima dela de forma desajeitada, e depois aceitou a rejeição".
A autora dessas frases em defesa de um acusado de assédio sexual é a feminista Gloria Steinem, uma das pioneiras do movimento feminista nos Estados Unidos, em uma coluna para a edição do "New York Times" de 22 de março de 1998. O acusado é o então presidente Bill Clinton.
Gloria se recusa a comentar o assunto. Deve se arrepender dessa coluna. Clinton, nos dias de hoje, não teria terminado seu mandato.
(Na época, a Câmara aprovou o impeachment de Clinton pelo crime de perjúrio, pois ele mentiu ao dizer que nunca havia tido relações sexuais com Monica Lewinsky, mas o Senado o absolveu. Se fosse hoje, o clima seria tal que dificilmente os senadores arcariam com o ônus político de absolvê-lo, independentemente do mérito das acusações de perjúrio ou assédio.)
O espírito do tempo mudou. Vários expoentes da esquerda americana vieram a público nos últimos dias para dizer que erraram ao defender Clinton. A senadora democrata Kirsten Gillibrand disse que Clinton deveria ter renunciado por causa do caso que mantinha com Monica Lewinsky (que, vale dizer, sempre disse que era consensual).
Nesses dias pós-Harvey Weinstein, Kevin Spacey, Al Franken, Charlie Rose, Glenn Thrush, Louis C.K. —não se tolera mais a teoria do "perguntar não ofende". Principalmente se a pergunta, ou abordagem, é bastante gráfica —como retirar seu pênis da calça.
Mas a grande ironia é que essa primavera das mulheres americanas não está ocorrendo sob a égide da primeira presidente eleita nos EUA. Hillary Clinton foi derrotada no ano passado. Na Casa Branca, está instalado Donald Trump, aquele que se gabou de "agarrar" mulheres pelos genitais e já foi acusado de assédio diversas vezes.
Será que é justamente por isso que as mulheres finalmente estão se manifestando, trata-se de uma reação contra o horror de ter um misógino na presidência? Será que finalmente caiu a ficha de que seu chefe dizer que você está "gostosa" não é inofensivo, é inaceitável, independentemente do tamanho da sua saia?
Depende. Pesquisa da Quinnipiac University publicada nesta semana mostra que as lealdades partidárias (e a polarização insana) ainda prevalecem em muitos casos. E que, para muita gente, assédio sexual não é tão grave.
Para 63% dos eleitores republicanos entrevistados, seria errado afastar Trump da presidência mesmo que PROVASSEM que as várias acusações de assédio sexual contra ele são verdadeiras.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade