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patrícia campos mello

 

02/09/2011 - 11h42

Cenas de José Meirelles Passos, para não esquecer

Ele chegava bem discreto, falava baixo, e sempre carregava no bolso do paletó um bloquinho amarelo. Não era qualquer bloquinho. Na capa, vinha escrito "Reporter's Notebook". Era um bloco que o Meirelles comprava há 15 anos de um senhorzinho no Estado da Virgínia, nos EUA. De quando em quando, ele ligava lá para se reabastecer. E o velhinho gostava tanto do Meirelles que mandava um monte de blocos de brinde.

Então lá vinha o Meirelles com seu bloquinho, sua boina e seu paletó de veludo. No verão, vestia sempre um colete de fotógrafo. De repente, puxava alguém de canto, começava a papear, e pronto --cavava uma história que ninguém tinha.

Outra companhia inseparável era sua Leica D-Lux 3. Ele sacava da mochila a camerazinha que parecia inofensiva e pumba, dia seguinte estavam lá imagens incríveis. Fotos e textos, José Meirelles Passos.

O Meirelles foi correspondente do jornal 'O Globo' em Washington por 22 anos. Fez coberturas em mais de 40 países, entre elas as duas guerras do Iraque, a batalha pelas Malvinas, a invasão dos Estados Unidos no Panamá. Ganhou vários prêmios, inclusive o Esso. Foi mentor de todos os correspondentes que passaram por Washington - e tive o privilégio de estar entre eles.

Arquivo pessoal
José Meirelles Passos
José Meirelles Passos

Ele morreu na quarta-feira de madrugada, no Rio.

O Meirelles era metódico e gostava de tradições. Mas apesar das décadas de estrada, não era antiquado, não --estava sempre com os últimos gadgets.

Fomos viajar para mais de 20 Estados cobrindo as eleições americanas em 2008. Orgulhoso, ele mostrava o serviço de GPS que tinha baixado no seu BlackBerry cor de vinho. "olha só, só US$ 9,99 por mês, no meu próprio telefone." Ele sempre achava o comício no meio do nada aonde a gente tinha de chegar.

Ah, e os restaurantes. Uma vez fomos obrigados a comer no Cheesecake Factory --o horror-- sob protestos veementes do Meirelles. Estávamos em Des Moines, Iowa, cobrindo a primária do Partido Democrata, em janeiro de 2008.

Foi a única vez que ele se rendeu ao trash gastronômico americano.

Antes de qualquer cobertura, já descobrira o restaurante ajeitado da cidade, onde era possível pedir uma comida decente e tomar sua tacinha de Chianti, depois de um dia interminável atrás da Hillary, Romney, Obama e McCain. Se alguém pedia vinho branco, ele soltava: "Tem mau gosto para tudo."

Seus olhos brilhavam com historinhas diferentes, ângulos novos, vida nas ruas. Mas ele também ficava fascinado --e olha que isso não é fácil-- com coberturas como as do Fundo Monetário Internacional (FMI). Vinha com pilhas de relatórios, animado: "Olha quanta coisa para garimpar, quanta informação!"

A Rita Siza, que era correspondente do jornal português Público e também conviveu bastante com o Meirelles, lembra de quando o viu pela primeira vez.

"Conheci o Meirelles em New Orleans no meio de um monte de correspondentes internacionais um pouco à toa com o Katrina. Ele era o mais velho de todos. Vestia o seu colete de repórter, e veio direto a mim perguntar "Você é que é a Rita?". Durante uns dias andamos inseparáveis. Mas não era só eu. Todos os outros jornalistas que ali estavam sabiam o nome do Meirelles, e ele num instante já conhecia todas as suas histórias. Uma das nossas cicerones lá, uma mulher que documentou todo o Katrina obsessivamente num blog, ficou com um "major crush" no nosso Meirelles. Esse era o efeito que ele tinha nas pessoas. Quando estava com elas, era de uma discrição absoluta mas logo se tornava inesquecível."

Em 2009, o Meirelles voltou para o Brasil, mais especificamente para o Rio, para ser repórter especial.

Contava que ia cobrir o Carnaval no Rio pela primeira vez com a mesma animação de quando ia para uma guerra ou eleição. "Tô contente: fui mesmo escalado pra cobrir o Carnaval. Era um evento que me faltava cobrir, dessas coisas grandes que rolam no mundo", ele me escreveu.

Em agosto, quando fui cobrir a guerra no Afeganistão, embedded, o Meirelles me deu todas as dicas essenciais de alguém que já tinha coberto mil e uma guerras: "O que levar? O básico pra sobrevivência profissional. Baterias duplas pro laptop e câmera, telefone (mantê-las sempre carregadas). Uma lanterna sempre ajuda. Assim como um canivete (desses do Swiss Army) que você encontra em todo lugar aí em Washington. Um livrinho gostoso é sempre útil, um dos que você gosta -- que pode abrir em qualquer página ou capítulo e ler um pouco, pra esvaziar a cabeça da tensão diária. Eu sempre tenho comigo o "Moveable Feast" do Hemingway ou o "Fame and Obscurity" do Gay Talese, que além de ajudar na 'terapia' sempre nos ensinam algo de jornalismo", ele me escreveu.

"É preciso cuidar-se nesses lugares com veículos estacionados --podem explodir a qualquer momento. Cuidado no olho-no-olho com os locais: isso nem sempre é bem vindo por gente daquelas bandas de lá, em especial vindo de uma mulher. No contato com os nativos, não os decepcione recusando alimentos ou bebidas que ofereçam à você: pode ser considerado um gesto ofensivo (mesmo que, talvez, a higiene seja duvidosa). São ossos do ofício."

Para arrematar, a piada, sempre. "Não se esqueça, é claro, dos seus chicletes -*pelo que conheço de você, deve levar um suprimento volumoso. Remédios nem preciso dizer, não é mesmo? Você bem sabe quais são os mais apropriados ao seu vício farmacêutico (rs)".

Ele costumava brincar com a minha mania de ir fazer compras nas farmácias americanas sempre que chegava a uma nova cidade.

Em 2010, ele foi cobrir a Copa do Mundo na África do Sul. Na volta, soube que tinha câncer no peritônio, de um tipo raro.

Em vez de se desanimar ou se queixar, ele encarou a doença como mais uma grande reportagem. Entrevistava os médicos e nos mandava e-mails detalhados sobre o diagnóstico, o que os médicos iam fazer, os procedimentos.

A Lucila Beaurepaire (jornalista do Globo, namorada e anjo da guarda do Meirelles) ficou ao lado dele esse tempo todo.

Na última vez que vi o Meirelles, três semanas atrás aqui no Sírio Libanês, ele já estava bem magrinho e usava umas meias para conter o inchaço das pernas.
Começou a me mostrar um cateter que tinham posto no nariz dele, todo orgulhoso com o negócio pendurado. "Isso vai me facilitar muito a vida, porque eu posso ir para casa, encaixo o soro, ai desencaixo e vou para rua, fazer matéria. É muito prático".

Ele se preparava para passar por mais uma sessão de quimioterapia.

E mandou o seguinte e-mail para a Adriana Aith, grande amiga dele e nossa companheira em Washington: "O ânimo é o de sempre. Não ria, mas.... nessa passagem agora pelo Sírio Libanês cavei uma bela matéria pra Ciência, na qual vou trabalhar semana que vem (uns telefonemas que vou dar em cima de um estudo bem legal feito aqui)".

Continuava repórter 24 horas por dia.

patrícia campos mello

Patrícia Campos Mello é repórter especial da Folha e escreve para o site, às sextas, sobre política e economia internacional. Foi correspondente em Washington durante quatro anos, onde cobriu a eleição do presidente Barack Obama, a crise financeira e a guerra do Afeganistão, acompanhando as tropas americanas. Em Nova York, cobriu os atentados de 11 de Setembro. Formou-se em Jornalismo na Universidade de São Paulo e tem mestrado em Economia e Jornalismo pela New York University. É autora dos livros "O Mundo Tem Medo da China" (Mostarda, 2005) e "Índia - da Miséria à Potência" (Planeta, 2008).

 

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