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Nós, os escravos da moda
Uma estagiária da grife inglesa Alexander McQueen entrou nesta semana com um processo trabalhista contra a marca, que ela diz dever quatro meses do seu salário. Na semana anterior, dois bolivianos foram postos à venda numa feira do Brás, importante polo têxtil de São Paulo, para servir de mão-de-obra barata em confecções do Estado.
Apesar de geograficamente distantes e inseridas em contextos diferentes, os casos escancaram dois lados de um tipo de moeda comum e indigesta da indústria do vestuário: a permuta escravocrata.
Em um extremo, o trabalho braçal dos bolivianos, que conquistariam nova vida no país; no outro, em troca de alguns croquis, a estagiária ganharia experiência e uma vida glamorosa.
O caso McQueen joga lenha no fato velado que é a má remuneração dos operários da moda. Na base da cadeia, costureiras, rendeiras e modelistas ganham algumas poucas dezenas de reais numa peça produzida.
Curioso observar que a cada novo caso de trabalho escravo ou desabamentos de prédios onde funcionam oficinas de costura –como o de Bangladesh, no ano passado, que matou mais de 1.000 pessoas– protestos inflamados contra o sistema da moda enchem as redes sociais.
Mas, quem financia o escambo humano? As marcas ou quem compra o produto barato que elas vendem? Os fashionistas –inclui-se aqui fotógrafos, estudantes de moda e stylists–, que se submetem a trabalhar quase que de graça, ou a indústria do hype formada a partir dos anos 1980?
Há quem encha a boca para dizer que não tem nenhuma peça que custe mais de R$ 100. Afinal, é chique ser "hi-lo". Não sabem –ou preferem omitir– que boa parte do seu guarda-roupa foi produzida em condições precárias, possivelmente em cidades asiáticas e, sem dúvida, brasileiras.
A quem interessar, a ONG Repórter Brasil lançou o aplicativo Moda Livre, disponível para smartphone, que elenca grifes e redes de lojas investigadas por trabalho escravo. E a lista, que inclui mais de uma dezena de empresas, pode aumentar.
Já corre nos bastidores a notícia de que alguns estilistas estão pagando menos de R$ 20 por um metro de renda produzida no Nordeste, que tem expertise em têxteis feitos à mão e que, no mercado internacional, seriam vendidos a peso de ouro.
Os mesmos designers que pagam pouco pelo produto, protestam contra a falta de profissionais qualificados e pelos impostos cobrados sobre a importação e a logística dos tecidos no país. "Ninguém quer ser operário", reclamam a cada temporada.
No caso da moda brasileira, com boa vontade e um pouco menos de preguiça por parte dos empresários e estilistas, o problema poderia ser amenizado.
No sul de Minas Gerais, há pouco menos de 300 km de São Paulo, há uma mão de obra ociosa de costureiras e rendeiras que ganham a vida vendendo para vizinhos e para empresários do ramo de decoração.
Designers como Patricia Bonaldi, Victor Dzenk e Lethicia Bronstein, sacaram há tempos o movimento e investem no trabalho artesanal mineiro.
Eles, como poucos, parecem entender que as mudanças começam na etiqueta costurada dentro da roupa. Já tentou olhar a sua?
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