Por quê?
Economês em bom português
Especialistas do Porque.com.br traduzem aqui, para o bom português, o economês do seu dia a dia, mostrando que economia pode ser simples e divertida. Escreve às terças.
O que importa, de fato, na crise da Previdência?
A proposta de reforma da Previdência do governo está à mesa. Mudanças radicais foram apresentadas: fixar uma idade mínima de 65 para a aposentadoria de homens e mulheres; não ajustar mais os benefícios de acordo com a variação do salário mínimo; fazer com que trabalhadores do setor público sigam as mesmas regras dos brasileiros empregados na iniciativa privada.
Essas possíveis alterações têm sido bastante debatidas entre os brasileiros —e é bom que seja assim, cada vez mais. Nos próximos meses, toda a sociedade precisa participar do debate. São mudanças de impacto na vida de todos. Precisamos entender exatamente o que o governo está propondo e acompanhar, durante a tramitação do projeto no Congresso, eventuais alterações.
EXISTE DEFICIT NA PREVIDÊNCIA?
Afinal, existe deficit na Previdência?
Essa questão —embora não seja relevante para o problema central brasileiro— tem sido amplamente discutida entre professores, políticos e movimentos sociais. E, pelos dados oficiais, a resposta é "sim". Os números indicam que a soma das contribuições de todos os trabalhadores para a Previdência não é suficiente para pagar os benefícios dos aposentados.
Mas há argumentos, como os da professora Denise Gentil, da UFRJ, bastante difundidos e que apontam para o contrário.
Para ela, temos um superavit na Previdência. De acordo com a professora, deveríamos olhar para o orçamento de Seguridade Social e Saúde (e não apenas o da Previdência Social). Nessa rubrica, mais abrangente, as receitas superariam as despesas. Ou seja, sobrariam recursos no caixa.
O problema verdadeiro da Previdência do Brasil, segundo essa teoria, é que o governo gasta esse dinheiro extra com outras coisas, não com aposentados e pensionistas. Por causa disso, uma reforma seria desnecessária.
O ponto é: na prática, nada disso é relevante. O que importa é o deficit ou superavit das contas do governo como um todo, e não só da Previdência.
COMO FUNCIONA UM ORÇAMENTO?
Vamos recorrer à tradicional metáfora da família para explicar como funciona o orçamento de um governo. No nosso exemplo, a família tem mãe, pai e filhos.
O pai e a mãe ganham salários muito parecidos e custeiam a educação dos filhos. Para simplificar o pagamento das contas, as despesas são divididas. O pai paga os gastos com a educação dos filhos, a mãe fica com o resto.
Repare: há dois orçamentos nessa família. O orçamento Pai, cujo superavit é a diferença do salário do pai e dos gastos com a educação dos filhos. E o orçamento Mãe, em que o superavit é a diferença entre o salário da mãe e os demais gastos da família.
Se algum dos dois tem um superavit (sobra de recursos), deposita a diferença em uma conta conjunta. Quando há deficit (falta de recursos), eles podem sacar dessa conta para cobrir o rombo.
Importante: se as retiradas forem muito grandes e frequentes, o dinheiro na conta acaba e eles precisam pedir emprestado ao banco.
Um dos filhos da família mora fora de casa, perto da faculdade. O aluguel do apartamento, em respeito às normas fiscais familiares, está no orçamento Pai.
Nos últimos anos, uma valorização do setor imobiliário puxou esse gasto para cima. Foi colocada pressão sobre o orçamento Pai, que passou a entrar recorrentemente em deficit. Aquele saldo reserva na conta corrente foi minguando até que a família acabou entrando no cheque especial.
Daí aparece um consultor financeiro. Ele propõe a seguinte solução: 30% do salário da mãe passaria a fazer parte do orçamento Pai. Dessa forma, diz ele, não teríamos mais um deficit no orçamento Pai, mas um superavit.
Resolveria o problema? Obviamente, não! Agora o orçamento Mãe baixaria e a família, do mesmo modo, teria de recorrer ao cheque especial. A dívida familiar total continuaria aumentando, como se nada tivesse sido feito.
Não importa, aí, o deficit ou superavit de cada conta em particular, tampouco se é tecnicamente do pai ou da mãe. O que importa: há um impacto no orçamento da família como um todo e ele se encontra em deficit.
Para solucionar o imbróglio, a família precisa ajustar as contas de verdade —ou seja, fazer um ajuste fiscal. Significa fazer os gastos caberem na remuneração total (mãe + pai). Para isso, precisará avaliar quais gastos são prioritários.
Manterá a TV a cabo e idas a restaurantes? Pedirá que o filho volte a morar em casa (ficando mais longe da faculdade) para economizar? Ou tentará manter os gastos atuais e buscará dinheiro em outras fontes (por exemplo, com pai e mãe fazendo bicos)?
QUAL O VERDADEIRO DILEMA DO BRASIL HOJE?
É esse o tipo de discussão que o Porque.com.br gostaria de ver no Brasil sobre as contas públicas. Não se chega a nada debatendo se o orçamento da Previdência tem deficit ou superavit.
O fato é: o governo brasileiro, como um todo, está no vermelho —e há tempos. Vai acumulando dívidas em velocidade impressionante e precisa ajustar suas contas.
Para resolvermos esse problema de verdade, as avaliações devem se concentrar nas diversas despesas do governo. O que manteremos? O que cortaremos? O que é prioritário para a sociedade? O que é um privilégio de relativamente poucos?
Caso desejemos manter tudo como está no Brasil, não escaparemos da alta dos impostos. Para evitar isso, é crucial mexer nas regras da Previdência. Por quê? Porque o Brasil gasta muito dinheiro com aposentadorias e pensões.
Hoje, esses gastos equivalem a mais que 10% do PIB. O valor é semelhante ao de países europeus, que contam com uma proporção muito maior de idosos em suas populações.
Estima-se que, com o envelhecimento populacional, esse valor será equivalente a 20% do PIB nas próximas décadas, na ausência de uma reforma ampla na Previdência.
Nosso principal dilema como sociedade está em saber se queremos continuar gastando valores como esses em aposentadorias e pensões. Se sim, quais outros gastos serão sacrificados? Ou aumentaremos continuamente, no ritmo do envelhecimento do Brasil, a já elevada carga tributária?
São questões como essas que precisamos responder. Para as decisões que devemos tomar neste momento, a questão da existência, ou não, de deficit na Previdência é irrelevante.
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