É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Heranças da ditadura nas cidades
Desde a semana que marcou os 50 anos do golpe militar no Brasil, muito tem se falado sobre o período autoritário, do contexto que o produziu, da repressão, da censura, dos que resistiram...
No campo da política urbana, uma reflexão necessária é: em que medida o processo de redemocratização do país rompeu com as formas de organização do Estado brasileiro para promover políticas públicas e até que ponto elementos de continuidade se fazem presentes.
Nesse campo, infelizmente, apesar das promessas da Constituinte de 1988, algumas lógicas herdadas do período autoritário permanecem. Ainda em 1964, o regime militar cria o Banco Nacional de Habitação (BNH), que em 1967 passa a gerir os recursos do FGTS, constituindo-se em um agente financiador de habitação e desenvolvimento urbano.
O modelo que se conforma naquele momento permanece hoje: a política urbana nacional é constituída basicamente por uma única fonte de financiamento, centralizada na esfera federal e estruturada de forma setorializada para financiar obras de construção de casas e de infraestrutura de saneamento e circulação.
A crise de urbanidade de nossas cidades demonstra que os quase 50 anos de operação dessa máquina de financiamento –apesar da falta de recursos nos anos 1980/1990– não foram capazes de promover cidades includentes e equilibradas.
Nossas políticas de habitação ilustram bem os elementos de ruptura e continuidade dessa lógica. A implementação de uma política de financiamento da casa própria logo após o golpe atendia a duas demandas: uma econômica, de dinamização da economia do país, e outra política, de constituição e ampliação de uma base social de apoio ao regime junto às classes médias.
Para a população mais pobre –as maiorias–, o BNH financiou escassas moradias de péssima qualidade nas periferias das cidades, ofertadas pelas Cohabs.
Hoje, com o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), é a população de menor renda que tem acesso a um subsídio público para comprar a casa própria ofertada pelo setor privado, que é responsável por conceber o projeto, escolher a localização e executá-lo.
São muitas as diferenças entre o MCMV e o BNH, a começar por seu foco e escala. Além disso, os controles e formas de fiscalização são muito maiores por parte da Caixa, sucessora do BNH.
Porém, deixada para o setor privado a decisão sobre a localização, sendo o subsídio fixo e na ausência de qualquer política urbana e fundiária, a operação será tanto mais rentável quanto menor o custo da terra a ser adquirida. Assim, os conjuntos do MCMV começam a repetir nas cidades as velhas Cohabs.
Assim como seu predecessor, o MCMV não é uma política habitacional/urbana, mas uma estratégia de dinamização da indústria da construção civil, concebida para promover uma reação econômica diante da ameaça de uma crise internacional e para ampliar e solidificar uma base social e política, agora junto à "nova classe média".
Como dizia Gabriel Bolaffi ainda em 1975, habitação e política urbana não são problemas distintos: são o mesmo problema. Mas a política urbana, raiz dos problemas habitacionais de nossas cidades, ainda clama por uma reforma do Estado que não ocorreu.
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