Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel

Não fomos feitos para isso; e daí?

Crédito: Kim Hong-Ji/Reuters Competidores da China no Campeonato dos Quatro Continentes de patinação no gelo, na Coreia do Sul
Competidores da China no Campeonato dos Quatro Continentes de patinação no gelo, na Coreia do Sul

A conferência, num resort de esqui em Keystone, Colorado, só começava à noite, então fui assuntar. Esqui, nem pensar, pois me lançar ribanceira abaixo sobre palitinhos em velocidade me soa como receita para quebrar perna e tornozelo. Mas patinar no gelo um dia fez parte do meu repertório, então fui lá testar a memória dos meus circuitos motores.

A parte sobre rapidamente recuperar uma capacidade desenvolvida na infância, mesmo na minha idade já razoavelmente avançada, é o que menos me impressiona no que concerne a humanos equilibrados sobre esquis, patins ou rodas.

A parte realmente impressionante é que não há argumento de design inteligente que explique como é que seres que até hoje se desenvolvem como quadrúpedes (que somos, basta ver humanos novinhos em deslocamento rastejante), além de se atreverem a andar por aí equilibrados em dois palitos articulados que servem de pernas (tente botar de pé uma batata espetada em dois pauzinhos e você entenderá o problema), ainda resolvem que é uma boa ideia se equilibrar sobre duas lâminas de aço que não param, apenas deslizam, sobre gelo –e conseguem. Mal conseguem e já começam a abusar, correndo de costas, perseguindo tocos de metal com tacos de madeira e, por que não, dando saltos e piruetas. E ainda parecem que nasceram fazendo isso.

Não nasceram, e justamente essa é a beleza de um sistema auto-organizado como o cérebro. Bastam uns 10 mil genes pra estabelecer uma ordem básica, uns neurônios pra cá, umas conexões para lá, e tem-se um sistema não ainda competente, mas pronto para ser solto no mundo e aprender (quase) tudo, inclusive deslizar sobre lâminas de metal. O projeto é entregue incompleto, mal saído da planta baixa, mas graças a isso o resultado sai melhor do que qualquer design inteligente que pudesse ser encomendado: há oportunidade para inventar. Meus antepassados certamente não foram feitos para patinar no gelo (nem para dirigir carro ou ir à Lua), mas isso felizmente não é impedimento quase algum.

Depois do começo titubeante, com todos os músculos dos tornozelos doloridamente contraídos tentando manter a vertical enquanto meu cérebro experimenta um circuito atrás do outro até reencontrar aqueles selecionados por tentativa e erro na infância, sucesso: consigo deslizar quase graciosamente. Quase tão bem quanto as criancinhas ao meu redor, que não têm medo algum de tentar.

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