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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

08/11/2011 - 07h00

O grande professor

O fato de o Brasil ter ficado em 84º lugar no ranking de desenvolvimento humano da ONU, divulgado na semana passada, causou certa surpresa em meio a tanto otimismo e bajulação internacional por conta dos reais e admiráveis avanços do país em termos de projeção econômica mundial.

O susto pareceu óbvio. Como é possível o país cujos presidentes recentes viraram estrelas da política global, e que sediará os eventos esportivos mais importantes do calendário, estar atrás, quando se fala de um índice que abarca saúde, educação e expectativa de vida, de nada menos que 10 outros países latino-americanos?

Pois o fato é que está. Atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Cuba, México, Panamá, Costa Rica, Venezuela, Peru e Equador, países que grande parte dos brasileiros tende a olhar com certo ar de superioridade, e muitas vezes, sem saber o que se passa ali.

Claro, pesquisas são questionáveis, e a quantidade de particularidades que devem ser levadas em conta na hora da interpretação dos números são muitas, principalmente em termos da escolha da metodologia aplicada.

Porém, mesmo fazendo descontos e ressalvas, não é desprezível a distância que nos separa, pelo menos, dos dois países latino-americanos melhor avaliados, e que são os únicos do continente a ocuparem lugar no nobre grupo dos países considerados com desenvolvimento humano "muito elevado": Chile (em 44º lugar) e Argentina (45º).

No caso da Argentina, seu excelente padrão na área de educação tem a ver essencialmente com o legado histórico de um homem singular, que comemoraria um aniversário importante em 2011.

Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) faria 200 anos neste ano. Escritor, jornalista, polemista, político e, por fim, presidente da Argentina (1868-1874), Sarmiento fez parte de uma geração de intelectuais muito influente, nascida mais ou menos na época da independência argentina e que cresceu alimentando o sonho de desenhar um projeto de nação para seu país.

É preciso lembrar que, diferentemente do Brasil, que tinha suas fronteiras delimitadas e certa estabilidade quando ficou independente, a Argentina teve de reconstruir-se após uma longa e custosa guerra, com a economia debilitada e as fronteiras indefinidas. A tarefa de planejar um país dadas tais condições foi bastante complicada.

Sarmiento escreveu pelo menos um clássico do pensamento político latino-americano do século 19. "Facundo: Civilização e Barbárie" (1845) é a biografia de um famoso caudilho da região de La Rioja conhecido por sua brutalidade e pelo modo personalista como exercia o comando. Sarmiento usou sua história de vida para fazer uma crítica ao modo como a Argentina era governada também no plano nacional, no caso pelo autoritário Juan Manuel de Rosas (1793-1877).

Além do "Facundo", Sarmiento deixou mais de cinquenta outros livros. Os temas são variados, mas todos estão relacionados à sua obsessão em fazer com que seu país abandonasse as velhas práticas de sobrevivência em tempos de escassez e guerra por um novo comportamento, inspirado num mundo moderno, e, em seu modo de entender, mais "civilizado".

E é aí que entra a educação. Sarmiento tinha a convicção de que apenas educando a população, o país poderia superar um estado que ele chamava de "barbárie" e que estava relacionado ao modo colonial e interiorano de vida, para começar a perseguir o progresso.

Convidado pelo presidente do Chile, num período em que se exilara nesse país por motivos políticos, viajou à Europa com o intuito de pesquisar os sistemas educacionais de lá para serem implantados nas escolas chilenas. Dessa viagem surgiu "Educación Popular" (1849), um de seus trabalhos mais importantes na área.

De um modo geral, pregava uma educação mais utilitária, racional e científica. E, o mais importante, independente da Igreja e dos governos. Defendia, porém, que se tratava de uma responsabilidade intransferível do Estado.

Sua obsessão pelo acesso de todos à educação o fez propor uma nova gramática para a língua espanhola, que facilitava o idioma fazendo as palavras escritas ficarem parecidas com aquilo que era dito.

Mas foi apenas quando entrou na vida pública em Buenos Aires, passado o período rosista, que Sarmiento passou a transformar suas ideias em ações concretas.

Inspirado pelo modelo norte-americano de organização da sociedade e do sistema educacional, que ele achava o mais adequado para estimular o progresso, começou a criar escolas, e nunca mais parou.

De seu período como presidente, o legado é impressionante. Foram criados colégios e faculdades em Buenos Aires, em capitais de províncias e no interior. Com seu ânimo constante e sua fama de insone, convenceu inúmeros professores estrangeiros, principalmente norte-americanos, a virem dar aulas neste distante país.

Entre outras instituições, criou a Escola de Mineração e Agronomia, a Faculdade de Ciências Exatas, a Academia Militar e a Escola Naval. Em Córdoba, o Observatório Nacional.

Construiu bibliotecas, para as quais mandou importar livros estrangeiros, e museus. Escreveu e editou publicações sobre educação. Organizou as estruturas de ensino.

Nascido numa província pobre e distante de Buenos Aires, a andina San Juan, tendo cursado apenas alguns anos da escola local e formando-se praticamente como um autodidata, Sarmiento construiu todo um sistema educacional, cujo legado se vê até hoje.

Já numa idade avançada e praticamente surdo, a Universidade de Michigan o condecorou com o título de doutor honoris causa pelos seus feitos na Argentina. Os relatos sobre a cerimônia contam que ele agradeceu desajeitadamente, emocionado, com seu parco inglês, mas foi ovacionado e levou quem assistia a cerimônia às lágrimas.

Hoje, Sarmiento é lembrado em cada escola argentina, e o dia de sua morte é o feriado do dia do professor nacional. Seu legado à educação é tão grande que de certa forma esconde suas contribuições nas áreas de história, política e sociologia. Que não são poucas.

Também deixam para um segundo plano os aspectos negativos de sua trajetória, como o fato de não ter conseguido substituir inteiramente a estrutura caudilhesca de poder no país quando exerceu o cargo de presidente.

Porém, se 200 anos depois de seu nascimento seu país ainda colhe os frutos do que seu entusiasmo e sua dedicação à educação construíram, como demonstra o bom desempenho na educação exposto na pesquisa mencionada, é porque seu exemplo ainda merece ser visitado, lido, discutido e compreendido.

Quem dera os atuais líderes da Argentina tivessem esse tipo de sonho para o futuro, e não apenas o de ganhar eleições atrás de eleições.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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