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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

06/12/2011 - 07h01

Cristina e a vergonha de ser jornalista

"Você trabalha no 'Clarín'?" Pergunta mal-humorado o taxista ao repórter do jornal, depois que este lhe diz o endereço a que queria ser levado.

Meu colega já vinha se irritando com esse tipo de patrulha. Chegou a dar nomes de ruas paralelas e preferido caminhar até a redação do jornal, só para não ouvir agressões de apoiadores do governo, que está em guerra com a imprensa independente.

Nesse dia, quis cortar de início o papo, e respondeu: "Não, estou indo lá só para entregar um envelope". Depois pensou no absurdo que tinha sido levado a dizer.

Outra conhecida, esta do "La Nación", conta que já não diz mais que é jornalista quando lhe perguntam a profissão. Prefere afirmar que trabalha com comércio.

Uma outra colega, que faz um curso de pós-graduação numa universidade local, havia se interessado pela aula de determinado professor. Um dia, foi pedir recomendações de leitura. Ele, simpático, a recebeu e perguntou a que se dedicava. Ela, orgulhosa, encheu a boca e disse: "jornalista".

Quem já está há algum tempo na profissão acostumou-se a ouvir comentários positivos depois de uma apresentação assim. Em grande parte do mundo ocidental considera-se o jornalismo uma profissão nobre, excitante e romântica. Há um consenso de que seja algo importante para o funcionamento da sociedade.

Pois o professor dessa minha amiga parou de sorrir quando ouviu essa palavra. "Aqui não gostamos de jornalistas", disse. Detalhe, ela não contou para que meio trabalhava (e não é nem para o "Clarín" nem para o "La Nación", críticos ao governo).

Comigo acontece também direto. Numa ocasião, numa barulhenta sala de espera de um dentista, enquanto preenchia minha ficha, a secretária perguntou minha profissão. Quando disse, fez-se silêncio, quebrado apenas pelo comentário desconcertante de uma senhora: "No seu país vocês são mentirosos também?".

Em debate do programa "6,7,8", atração da TV estatal cuja finalidade é malhar a imprensa crítica ao kirchnerismo, o comentador Orlando Barone soltou a seguinte pérola: "O jornalismo é inevitavelmente de direita porque a democracia é de direita. O jornalismo nasce para defender a democracia, dentro dos cânones instituídos da propriedade privada".

O governo Cristina Kirchner, que começa um novo ciclo no próximo sábado, é louvável em alguns aspectos: tirou a Argentina da prostração econômica pós-2001, levou militares responsáveis pela repressão da ditadura (1976-1983) a julgamento e à prisão e aprovou o matrimônio gay.

Porém, sua relação belicosa com a imprensa assusta. Nesta área, vemos gestos autoritários e uma tendência de seguir modelos como os de Hugo Chávez, na Venezuela, e Rafael Corrêa, no Equador.

Para defender-se da imprensa crítica, o governo montou ele mesmo um grande conglomerado, que conta com jornais, canais de TV, rádios e portais.

Estes defendem as políticas do governo mas, principalmente, atacam a cobertura de jornais tradicionais e, o que é mais grave, questionam a própria utilidade da imprensa independente.

A proposta dos meios kirchneristas é implantar o que chamam de "jornalismo militante". A expressão tem sido difundida não só na mídia governista, mas nas faculdades de comunicação.

O "jornalismo militante" prega a ideia de que o compromisso do jornalismo deve ser com "causas", citando explicações da professora da faculdade de comunicação de La Plata, Florencia Saintout.

Intelectuais como ela se defendem dizendo que, como o jornalismo nunca é objetivo, é melhor escolher de uma vez um lado da trincheira.

As "causas" do jornalismo militante, obviamente, não são quaisquer causas. Em essência, coincidem com as bandeiras do governo. O principal já não é certificar-se de que um fato é verdadeiro, mas sim descobrir quem o diz e por que o diz. Se é alguém ligado ao outro lado, então provavelmente é mentira, segundo sua lógica.

O governo já anunciou que reforçará a execução da Lei de Meios, que tirará poderes de grupos como o Clarín e dará mais espaço a "meios militantes".

Os próximos quatro anos são, portanto, um desafio para o jornalismo independente, essencial para o funcionamento das instituições do país _ainda que isso, para os kirchneristas, soe como um argumento "de direita".

Cristina, que dá sinais de que prefere se alinhar ao Brasil de Dilma, mais do que à Venezuela de Chávez, deveria baixar o tom contra a imprensa independente.

Nada a fará mais parecida ao líder venezuelano do que acuar o jornalismo e fazer com que jornalistas tenham vergonha de declarar o que fazem em público.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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