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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

13/12/2011 - 07h00

Com a História não se brinca

A história é feita de leituras e releituras do passado. Longe de ser uma área estática do conhecimento, se constrói constantemente a partir de perguntas e preocupações dos homens do presente.

A principal riqueza da narrativa histórica está em sua abertura a novas interpretações, principalmente quando à luz de pesquisas e fatos descobertos que ajudem a iluminar os acontecimentos.

A expressão revisionismo histórico, na Argentina, possui uma peculiaridade, ligada à relação do conhecimento popular com a trajetória dos partidos e de um vínculo ideologizado com o passado que faz parte da cultura local.

Se no Brasil o cidadão médio conhece, em geral, muito pouco a história de nosso país, na Argentina acontece o contrário. O que é algo louvável sem nenhuma dúvida. Só que esse conhecimento é tão passional e visceral que chega a ser violento em alguns casos.

No final de novembro, a presidente Cristina Kirchner criou por decreto um instituto destinado a reescrever a história oficial de acordo com o revisionismo histórico à argentina.

Trata-se do Instituto Nacional de Revisionismo Histórico Argentino e Iberoamericano Manuel Dorrego. Segundo o que foi divulgado, entre seus principais objetivos está o de reforçar e divulgar uma concepção da história desde um ponto de vista "nacional, popular e federal".

Antes de cair em cima da decisão de Cristina, é preciso primeiro lembrar que tal corrente de pensamento não é nova. Está longe de se tratar de uma invenção de Cristina.

Resumidamente, até finais do século 19, a Argentina viveu dividida entre grupos políticos que ou defendiam ideias liberais de progresso, inspiradas principalmente no modelo norte-americano, ou que acreditavam que a fonte de poder local, a dos caudilhos, era a mais legítima e eficiente.

Com os governos dos presidentes Bartolomé Mitre (1862-1868), Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874) e Julio Roca (1880-1886 e 1898-1904), o primeiro grupo prosperou. A Argentina cresceu, entrou no mercado internacional como exportador de alimentos e incorporou imigrantes à sua sociedade.

Nos anos 30 do século 20, houve uma primeira iniciativa para resgatar líderes considerados então verdadeiramente nacionalistas e patriotas.

Os nomes mencionados acima foram demonizados, e passou-se a celebrar Juan Manuel de Rosas, governador autoritário que a partir da província de Buenos Aires mandou em toda a Argentina, contando com o apoio dos caudilhos do interior (de 1829 a 1832 e de 1835 a 1852). Rosas seria, para esses nacionalistas, um defensor da soberania nacional porque de fato defendeu a Argentina de invasões estrangeiras.

Depois, no governo de Juan Domingo Perón dos anos 40/50, houve uma segunda retomada dessa onda nacionalista, dessa vez preocupada em resgatar o popular. Nela, o caudilho era visto como o governante que mais vínculo natural teria com a população.

Durante a gestão de Carlos Menem, nos anos 90, a figura do caudilho também foi elevada. O então presidente mandou buscar os restos de Rosas, que morreu no exílio, na Inglaterra, e construiu uma estátua em sua homenagem diante do local onde está uma de Sarmiento esculpida por Auguste Rodin, nos Bosques de Palermo.

Nesse meio tempo, a história tida como "liberal" continuou sendo muito reconhecida, principalmente nos meios intelectuais e universitários. Mitre, além de primeiro presidente do país unificado, é tido como um dos precursores da história em seu país, com sua biografia do prócer da independência San Martín.

Sarmiento também é muito celebrado, até por opositores, como o fundador do projeto de educação massiva que ainda mantém o país entre os mais avançados do continente nessa área.

Os nacionalistas veem Mitre e Sarmiento como reféns da oligarquia, subservientes a forças estrangeiras. Já Roca é demonizado como grande comandante da Campanha do Deserto. Nesse caso, com bastante razão, pois a empreitada de conquista do interior gerou um verdadeiro genocídio dos povos indígenas.

A iniciativa de Cristina com seu instituto, agora, seria então mais uma tentativa de opor a história "liberal" à história "popular", reivindicando como heróis os protagonistas desta segunda, e como bandidos os da primeira.

Todos esses homens, as batalhas que empreenderam e decisões políticas que tomaram são passíveis de discussão, novas investigações e releituras. Nenhum historiador sério concordaria com a ideia de colocar um ponto final na pesquisa de algum tema, qualquer que seja.

O que é equivocado por parte da decisão do governo de Cristina é justamente institucionalizar uma certa visão da história e legitimá-la como "oficial".

Ao adotar como política de Estado uma leitura da história que demonize a colaboração de próceres considerados "liberais" e "estrangeirizantes" em detrimento dos que se têm como "nacionais" e "populares", o instituto está claramente construindo um caminho para a canonização de Néstor Kirchner (1950-2010) e, por que não, também da própria Cristina em algum momento.

Em defesa do instituto, Pacho O'Donnell, encarregado de tocar o projeto, disse que o governo não interviria em linhas de pesquisa: "A única intervenção foi institucionalizar uma corrente de pensamento". Não percebeu, aparentemente, que é justamente esse o problema.

Além disso, apoiar esse tipo de leitura vai de encontro a uma discussão historiográfica já superada a nível mundial.

Trata-se de uma história maniqueísta, em que há "bandidos" e "mocinhos", e na qual se enaltecem os heróis. Uma das contribuições da Nova História francesa foi justamente a de propor uma alternativa à história baseada na celebração de datas de batalhas e em biografias de personagens, pregando um conhecimento mais ampliado, uma análise do contexto que condicionou distintas manifestações e comportamentos.

Não é fácil entender a relação que os argentinos têm com seu passado. O culto aos ícones muitas vezes opaca a visão crítica sobre o que passou. E o apego a um partido, especialmente ao peronista, leva a dividir os personagens entre "bons" e "maus", quando a história é algo um tanto mais complexo.

Ainda assim, é de se admirar o conhecimento médio que todos por aqui têm do passado argentino. É uma riqueza cultural que atravessa classes sociais e faixas salariais.

O Brasil, neste quesito, está muito longe de seu vizinho. Não se discute e não se briga como aqui, é verdade, mas a razão é triste, simplesmente porque os brasileiros, em geral, não conhecem seu passado.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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