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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

24/01/2012 - 07h00

O ruído dos intelectuais

A relação entre intelectuais e política tem características distintas em cada país. Na Argentina, ela inevitavelmente é mais apaixonada do que no Brasil, e também muito mais parcial.

Desde 2008, o kirchnerismo tem um grupo que lhe dá respaldo intelectual, trata-se do Carta Abierta, que tem à frente o respeitado sociólogo e diretor da Biblioteca Nacional, Horácio González.

O Carta Abierta defende o governo e vários aspectos de sua política, o progressismo em matéria de costumes, a presença do Estado na economia, o ataque à imprensa opositora e a defesa de um jornalismo "militante", em contraposição aos meios opositores ao governo. Em geral, faz uma crítica feroz a tudo o que possa ser enquadrado sob o rótulo de "liberal".

Foi o Carta Abierta, por exemplo, quem, por meio de González, tentou impedir a vinda do peruano Mario Vargas Llosa, um liberal convicto e crítico do kirchnerismo, de participar da Feria del Libro de Buenos Aires, no ano passado. Mais radicais que a própria presidente, os intelectuais do grupo acabaram recebendo uma reprimenda até de Cristina Kirchner, que pediu que se levantasse a proibição e que se deixasse livre o acesso do autor de "Lituma nos Andes" ao evento.

Nas últimas semanas, um grupo de intelectuais oposicionistas reuniu-se para fazer frente ao Carta Abierta. Trata-se do Plataforma 2012, que ainda está dando seus primeiros passos e tem na figura da ensaísta Beatriz Sarlo seu principal referente.

O Plataforma 2012 formou-se pouco depois do surgimento do polêmico Instituto Dorrego, criado com fundos do governo e dedicado a fazer uma revisão da história privilegiando "heróis populares" em vez de "heróis liberais". A criação do instituto foi acompanhada de uma imensa polêmica, sobre a qual já tratei neste espaço.

Basicamente, o instituto se destina a formular um relato oficial da história por parte do governo. Apoiado em conceitos ultrapassados da historiografia, como o engrandecimento de heróis e batalhas, o discurso dos membros do instituto é que se deve contrapor a história dos "vencedores" com a de líderes populares, segundo eles deixados em segundo plano. A ideia tem, obviamente, fins políticos, entre eles o de enaltecer projetos ideológicos associados ao peronismo e ao kirchnerismo.

Em sua mais recente edição, a excelente revista "La Maga" traz uma entrevista com o historiador Tulio Halperín Donghi. A "Maga", por si só, merece um parêntese. Trata-se de uma publicação que não tem semelhança com nenhuma outra do Brasil. Criada nos anos 90, ficou fora de circulação mais de 12 anos, mas voltou em 2010. Traz ensaios, entrevistas, trechos de novas obras e é inteiramente dedicada à produção e ao debate intelectuais sobre política, sociedade e cultura. Está longe, porém, de ser uma publicação de ares acadêmicos. A diagramação é leve, há muitas fotos, e os textos são claros e bem redigidos.

Voltando à entrevista com Donghi. Este é o mais importante intelectual vivo da Argentina. Nasceu em Buenos Aires em 1926 e partiu para o exílio em 1966, depois da Noche de los Bastones Largos, uma repressão universitária ocorrida durante a ditadura do general Juan Carlos Onganía (1966-1970).

Halperín Donghi é hoje professor da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Seus principais trabalhos são referência para entender a Argentina dos séculos 19 e 20: "Argentina en el Callejón", "La Argentina y la Tormenta del Mundo" e o belo ensaio "Una Nación para el Desierto Argentino", em que analisa os projetos de sociedade formulados pelos visionários intelectuais de meados do século 19.

Na entrevista, Donghi, muito ponderado e pouco agressivo, distinto de seus pares radicados aqui, toma ponto por ponto o manifesto fundador do Instituto Dorrego para questionar sua legitimidade. O título da matéria define bem o que o intelectual promove com seus argumentos: "O bisturi que disseca o Instituto Manuel Dorrego".

Começa pela reclamação do instituto de que a história ensinada hoje no país é aquela formulada por intelectuais portenhos, por sua vez muito concentrada na visão vitoriosa de Buenos Aires. O historiador aponta as cifras do aumento crescente nas últimas décadas de acadêmicos vindos das províncias argentinas, de países como Chile, Uruguai e Brasil, à Universidade de Buenos Aires. Mostra que a produção acadêmica hoje é muito mais variada e plural do que na época de Juan Domingo Perón, nos anos 40/50, quando um professor que não fosse alinhado ao regime estava literalmente fora do mercado.

Depois, parte para as críticas ao modo sensacionalista como os historiadores alinhados ao kirchnerismo fazem analogias anacrônicas para identificar uma linhagem de "bons" padecendo sob a tirania dos "maus" na história.

Um exemplo é a comparação feita entre a morte do líder da independência Mariano Moreno, no século 19, jogado no mar depois de morto numa viagem à Europa, com as vítimas dos "voos da morte", da ditadura dos anos 70. Halperín Donghi aponta a irresponsabilidade de tal comparação, que ignora o contexto histórico de ambos os fatos.

O historiador também ataca o furor midiático dos historiadores kirchneristas. Seu principal alvo é Felipe Pigna. Trata-se de um intelectual que tem seus méritos como divulgador. É uma espécie de Eduardo Bueno do Rio da Prata, que escreve livros de história para o público leigo. Mas a comparação com o loquaz e inteligente historiador gaúcho só vai até aí.

Pigna é comprometido até os ossos com o governo. Dele ganha estímulos de diversos tipos e já conquistou espaço na televisão, muito por conta desse posicionamento. Os livros que têm lançado, não casualmente, enaltecem a luta das "mulheres poderosas" da Argentina, das heroínas da independência até Evita, obviamente para celebrar, indiretamente, Cristina.

É uma pena que Pigna esteja tão em evidência e Halperín Donghi apareça pouco para o debate. Quando o faz, porém, é com saudável moderação e bons argumentos.

Também é de se lamentar o fato de sua obra ser pouco difundida no Brasil, tanto em livros como em artigos (até onde sei, apenas "História da América Latina" está traduzida, pela Paz & Terra). Seus textos ajudam a entender melhor esse país irmão e suas peculiaridades políticas e culturais.

Para os que gostariam de introduzir-se em seus escritos, a editora siglo XXI publicou em 2008 as memórias do historiador ("Son Memorias"). Trata-se de uma autobiografia emotiva e política, que conta a história do século 20 através dos olhos de alguém que o viveu praticamente inteiro.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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