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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

06/03/2012 - 07h00

Na Patagônia

Por razões de trabalho, estive algumas vezes na Patagônia nos últimos meses. Em Ushuaia, no sul da Argentina, em Punta Arenas, no sul do Chile, e nas ilhas Malvinas --que podem estar sendo disputadas politicamente entre argentinos e britânicos mas, do ponto de vista geográfico, não restam dúvidas, são ilhas patagônicas.

A Patagônia é uma região que cruza fronteiras e tem características sociais e culturais muito marcadas. Paisagens frias e desérticas. Cidades de estilo --e até alguns hábitos, como o da sesta-- espanhol, ruas largas, arborizadas, a praça central, os grandes e organizados quarteirões. Os prédios públicos e as casas são construções sólidas para abrigar do frio e proteger do vento. Em muitos lugares, sente-se uma forte inspiração inglesa e galesa.

Não é de hoje que a região exerce um encanto muito particular em forasteiros, em especial nos europeus. Chegam intrigados pela natureza e suas lendas, como a dos homens gigantes, e atraídos pelas baixas temperaturas, que os faz sentirem-se em casa.

Até hoje, ninguém a descreveu melhor que o britânico Bruce Chatwin (1940-1989), num livro que já se tornou um clássico e pode ser visto em livrarias locais e debaixo do braço de mochileiros e aventureiros que atravessam essas terras.

Trata-se de "Na Patagônia" (1977), uma crônica de viagem que fez com que Chatwin fosse colocado pela crítica ao lado de escritores britânicos de primeiro time. O livro, que já tem quase 40 anos, ganhou edição recente pela Companhia das Letras.

Resolvi relê-lo em minha última viagem para o sul. E foi interessante notar os paralelos entre a Patagônia de Chatwin e a dos dias de hoje.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que Chatwin era um mitômano, um cronista que deixava a imaginação intervir livremente em suas descrições de pessoas ou paisagens. Depois que "Na Patagônia" foi publicado, os editores de Chatwin receberam várias reclamações de gente que ele havia entrevistado e que reclamava de distorções e exageros a partir do que haviam lhe dito.

Ainda assim, seu livro é um relato muito vivo sobre o modo como os estrangeiros que vinham fincar raízes no sul se transformavam. Nesse sentido, é um verdadeiro ensaio sociológico. O retrato das comunidades galesas e escocesas, por exemplo, que traziam seus costumes e tentavam viver isolados, mantendo o modo de vida daqueles países por gerações, é sensacional.

Chatwin descreve membros dessas comunidades que nunca haviam pisado no velho continente, porque já haviam nascido na Patagônia, mas ainda assim mantinham a vestimenta, o modo de alimentar-se e vestir-se, as músicas, a língua de lá. Era como se criassem uma bolha no tempo, porque afinal, mesmo no País de Gales e na Escócia contemporâneos muitas dessas características já tinham desaparecido.

Chatwin também explorou o tema dos foragidos da justiça, e das pessoas que buscaram a Patagônia como lugar para esconder-se ou para reinventar completamente sua história, construindo uma nova personalidade. Entre os casos mais famosos está o do mítico bandido norte-americano Butch Cassidy, que comprou uma fazenda e se instalou na província de Chubut. Sua passagem pela América Latina também é cheia de lendas, sobre assaltos, fugas, e até a de sua própria morte, nunca esclarecida por completo.

"A Patagônia é o lugar mais distante que o homem pode atingir desde seu local de origem. É, por isso, um símbolo de sua inquietação", escreveu Chatwin. Ele mesmo se encaixava nessa afirmação. Teve uma vida incomum. Abandonou emprego para empreender a viagem. Andou por muitos lados, teve vários amantes. Era bissexual e a mulher o acompanhou até o final da vida. Morreu por consequências da Aids, com apenas 49 anos. "Ele vivia no exílio", declarou sua companheira, Elizabeth, depois de sua morte.

Nos dias de hoje, ainda é possível encontrar europeus descendentes das primeiras comunidades no interior. Os costumes, de um modo muito lento, vão se modificando, mas o espírito continua. É normal cruzar, numa praça ou numa venda, com gente de pele clara, falando um espanhol cheio de sotaque. Os velhos ponchos vão sendo trocados pelos agasalhos de frio e neve que se popularizaram no sul.

Nas cidades, estão os viajantes, talvez com o mesmo olhar fascinado por ir escalar um vulcão, conhecer uma geleira, ver rachar um glaciar. A indústria do turismo, porém, fez estragos nesse romantismo. Numa cidade como Ushuaia, por exemplo, é praticamente impossível conhecer algo sozinho, independente de alguma excursão alardeada por cartazes coloridos. Anda-se sempre cercado de outros turistas com máquinas fotográficas e todo o arsenal típico. A cidade também tem todo tipo de restaurante internacional e hotéis-boutique. Elementos que destoam completamente da solidão fueguina do passado.

Jantando uma noite dessas com amigos em Punta Arenas, um deles fez piada, quando passou um homem de barba branca, colete e calças de explorador. "Mas é o Darwin!", disse. A brincadeira faz sentido, não só porque o velho cientista passou mesmo pela região, mas porque o espírito de sua expedição segue vivo e atraindo a curiosidade de novos viajantes.

Como bem registrou o escritor Nicholas Shakespeare, biógrafo de Chatwin, a Patagônia é uma região propícia para entender muitas origens, "a da teoria da evolução de Darwin, a do Caliban de Shakespeare, a do mundo perdido de Conan Doyle" e outras.

É romântico querer que ela permaneça quase desértica e cheia de mistérios. Mas um pouco de proteção com relação ao efeito predatório do turismo seria uma homenagem aos cientistas, desbravadores e escritores que, como Chatwin, revelaram ao mundo seus encantos.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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