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sylvia colombo
crônicas de Buenos Aires
"La Pepa"
Em 2008, o Brasil celebrou os 200 anos da vinda da corte portuguesa ao Brasil, que abriu as portas para a independência do país, em 1822. Em 2010, os países hispano-americanos celebraram o bicentenário dos primeiros levantes que deram origem aos diferentes processos de separação da Espanha.
Em geral, se considera que as ideias que influenciaram a ruptura e a constituição de novos Estados por todo o continente tenham vindo exclusivamente da França e dos EUA. A história, como sempre, é um pouco mais complexa, e outros textos ajudaram a moldar os estados nacionais latino-americanos de hoje.
Um deles é a constituição espanhola de 1812, que neste mês completa também 200 anos e tem motivado uma série de eventos e reflexões na Espanha. Há uma revisão histórica no país reivindicado a valorização de seu legado.
Promulgada em Cádiz, em 19 de março daquele ano, a chamada "La Pepa" (por nascer no dia de São José, e "pepe", em espanhol, é um apelido para "josé") foi um dos primeiros textos liberais que vieram à luz na Europa e serviu de inspiração para várias constituições dos novos países da América Latina.
A Espanha vivia momentos difíceis. Napoleão havia feito prisioneiro o rei e forçado sua abdicação em favor de seu irmão, José Bonaparte. No vizinho Portugal, com medo de ter o mesmo destino, a família real embarcara para o Brasil.
O vazio de poder abriu espaço para a formação de juntas espalhadas pelo país. Em Cádiz, cidade ao sul da Espanha, reuniu-se a primeira assembleia constituinte destinada a congregar "espanhóis dos dois hemisférios", ou seja, elevando à categoria de nacionais pela primeira vez os nascidos na América.
Foram à Espanha representantes dos hoje Peru, Equador, Chile, México, e outros, que se reuniram com os locais. Hoje, esses legisladores estão sendo considerados também heróis, por terem se reunido para tentar transformar o país numa cidade em plena guerra, sitiada pelos franceses e enfrentando uma epidemia de febre amarela.
Não se pode dizer, porém, que a "Pepa" tenha sido uma constituição essencialmente progressista. Apesar de estabelecer o sufrágio universal masculino para diversos cargos, reconhecia a legitimidade da monarquia constitucional. Além disso, determinava que a religião católica seria a oficial, proibindo todas as outras.
Porém, o texto deu impulso a várias reformas de ordem liberal, sendo que muitas delas permaneceram nas cartas que vieram depois na Espanha e foram exportadas para as repúblicas nascentes na América.
A "Pepa" estabelecia a divisão de poderes, a liberdade de imprensa, o direito à representação, e colocava em posição de igualdade europeus, "criollos" (nascidos na América) e indígenas. Além disso, ainda punha um ponto final nas atividades da Santa Inquisição, o que não é pouco.
A constituição esteve em vigor num primeiro momento por apenas dois anos, até a volta de Fernando 7o ao poder, em 1814. O retorno ao absolutismo, porém, já não era mais possível nos mesmos moldes que antes, e o texto continuou influente e voltou a ser válido em mais duas ocasiões até ser substituído definitivamente pela constituição de 1837.
Quase toda a historiografia que surgiu após a independência dos países latino-americanos teve um forte viés anti-espanhol. O elogio aos iluministas franceses e aos idealistas da emancipação norte-americana predominam, de certa forma, até a atualidade.
Mas a ideia da Espanha como força colonial obscura e atrasada no tempo vem sido revista pela historiografia. As comemorações do bicentenário da "Pepa" têm trazido à discussão em universidades e artigos de jornais as ideias que ajudaram a constituir os estados nacionais latino-americanos, mostrando que o processo de ruptura da Metrópole com a Colônia foi mais complexo e teve mais matizes.
Num momento de crise econômica grave na Espanha, a volta da "Pepa" ao debate público é também um exercício de nostalgia de uma época em que o país era sede de um imenso império, dos dois lados do Atlântico, e uma forma de reivindicar um maior protagonismo na história das ex-colônias, que iam sendo perdidas uma a uma. Já para a América Latina, é uma oportunidade para questionar a relação do Estado com suas instituições, que hoje infelizmente é um tanto tortuosa em alguns países.
Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.
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