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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

03/04/2012 - 07h00

A língua das Malvinas

Conheci o escritor argentino Rodolfo Fogwill (1941-2010) na Bienal do Livro do Rio de 2007. Agasalhado, apesar do calor carioca, muito magro, me esperava no stand de uma editora. Falamos sobre "Os Pichicegos" (Casa da Palavra), romance seu sobre a Guerra das Malvinas, escrito em 3 dias, durante o conflito, e publicado pela primeira vez em 1983.

"Resolvi escrevê-lo quando vi minha mãe assistindo o noticiário na televisão e vibrando com a farsa que dizia que estávamos ganhando a guerra. Ver minha mãe nessa euforia belicosa para mim foi o maior absurdo, e achei que isso tinha de ser tratado por meio da literatura."

Lembro-me de Fogwill agora, quando na Argentina só se fala das Malvinas. Nesta semana, completaram-se 30 anos da chamada tentativa de "recuperação" das ilhas. A guerra que se desencadeou a partir daquele 2 de abril de 1982 durou 74 dias e causou 649 mortes do lado argentino, 255 do lado britânico, além de três civis "kelpers" (habitantes das ilhas).

A quantidade de artigos publicados no último fim de semana contra e a favor da reivindicação argentina das ilhas é estonteante. As TVs daqui também não param de exibir especiais sobre a história do arquipélago e do conflito, enquanto especialistas de várias áreas são entrevistados a todo momento.

Ninguém trouxe nada muito novo, a não ser os repórteres dos principais jornais locais, que viajaram às ilhas e mostraram como se sente a população hoje, atualizando um pouco o debate.

Nesse cenário, a novela de Fogwill, que morreu há pouco mais de um ano, ganha atualidade. Reeditada recentemente pela editorial El Ateneo, conta a história de um grupo de desertores argentinos (os chamados "pichicegos").
Escondidos em buracos, eles fazem de tudo para sobreviver à guerra, negociando com os exércitos argentino e inglês por comida e outros insumos básicos.

Fogwill não esteve nas ilhas, e ele mesmo brincava com isso. "É como se eu contasse um sonho em que estivesse estado em Helsinque, nunca estive em Helsinque." Seu desconhecimento do arquipélago é notório, não houve investigação e a ambientação é mínima. Em algumas passagens se nota mais claramente, como quando os soldados atravessam um pasto "cheio de bosta de vaca". Quem conhece um pouco as Malvinas sabe que ali quase não há vacas, predominam as ovelhas.

Mas isso não tira o brilho literário do livro. A riqueza de "Os Pichicegos" está no modo como Fogwill inventa uma linguagem ao explorar como devem ter sido os diálogos entre os jovens soldados escondidos e amedrontados.

As conversas são secas, têm uma macabra ironia e ao mesmo tempo são juvenis e coloquiais. A morte, a fome e a doença assombram os garotos, e seu modo de defender-se é criar uma linguagem da guerra.

Assim descreveu o livro à Folha o escritor naquela ocasião: "Meus desertores imaginários eram o melhor objeto de investigação para minha idéia, a de que um desertor é quem constrói uma economia de guerra pelas costas dos outros. Parecia-me mais verdadeiro falar deles do que investigar o destino dos infelizes que se condenaram a protagonizar o conflito. Penso que o verdadeiro, no ser humano, só aparece no exercício da liberdade dentro de situações-limite."

Como ninguém, Fogwill explorou o drama argentino por meio dos olhos dos meninos desesperados. Segue um belo trecho da obra:

"O medo: o medo não é igual. O medo muda. Há medos e medos. Uma coisa é o medo a algo - a uma patrulha que pode cruzar com você, a uma bala perdida-, e outra diferente é o medo de sempre, que está aí, atrás de tudo. Você leva esse medo, natural, constante, meio afogado, sem ar, e sobre o medo que traz aparece outro medo, um medo forte, mas pequeno, como um espeto numa ferida. Existem dois medos: o medo a algo, e o medo ao medo, esse que sempre carregas e que nunca vai poder arrancar de dentro de você desde o momento em que surgiu."

Existem outros bons romances sobre as Malvinas, como "Las Islas", de Carlos Gamerro, "Segunda Vida", de Guillermo Orsi, e "Una Puta Mierda", de Patrício Pron. Nenhum deles, porém, tem a força literária e dramática da curta e envolvente novela de Fogwill.

No meio de tanta incompreensão e de lugares comuns vazios tão presentes nessa efeméride, o texto ganha vida, importância e atualidade.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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