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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

22/05/2012 - 07h00

Os argentinos e o dólar

Em uma reportagem divertida, há alguns meses, o programa televisivo "CQC" daqui fez uma comparação entre os modos como argentinos e brasileiros encaram a relação com o dólar.

O repórter saía às ruas de Buenos Aires e perguntava aos locais quanto estava a moeda norte-americana. A resposta vinha em cifras muito exatas, "4,30", "4,44", "4,47". Sempre bem informados, os portenhos sabiam na ponta da língua a cotação do dia.

O mesmo repórter viajou para São Paulo, saiu às ruas, mas o resultado foi bem diferente. "Quanto está o dólar? Não sei", "Não tenho ideia", e por aí vai. O que ilustra, entre outras coisas, como aqui no Prata se consome mais notícias do que aí no Brasil.

Na Argentina, o costume de economizar em dólares é muito enraizado. O histórico de hiperinflações --a mais recente, nos anos 80-- e a desconfiança do sistema bancário, que deixou a todos na mão em 2001, levaram os argentinos a terem uma férrea confiança de que a moeda norte-americana é o melhor dos investimentos.

Nem mesmo o fato de saberem que a economia dos EUA não anda em sua melhor forma muda os hábitos dos argentinos. Todo o mercado imobiliário se movimenta em dólar, aluguéis, compra e venda de casas e apartamentos. Tudo que é bem durável ou de alto valor também é cotado, negociado e vendido mediante a presença física de bilhetes norte-americanos.

Com medo de deixar o dinheiro no banco, o argentino em geral o guarda em casa e em dólares. É o chamado "colchon bank". A prática leva a uma imensa desconfiança de qualquer estranho entrando em casa, de empregadas domésticas a prestadores de serviço. Também é responsável pela alta taxa de assaltos a domicílio no país e por brutais e às vezes mortais assaltos a idosos.

Pois na semana passada a nação esteve com os nervos à flor da pele. O governo, que já vem adotando há meses uma política de restringir a compra de dólares por particulares e empresas, acirrou ainda mais o controle. Temendo que a fuga de capitais aumente e tentando manter no país um dinheiro necessário para investimentos em diversas áreas, a gestão Cristina impôs mais uma complicação para quem quer comprar a moeda. Agora, começa a ser monitorado também o destino dos bilhetes. Quem tentar vender no mercado negro será impedido de comprar novamente.

A medida, que limita ainda mais a compra do dólar oficial, fez com que a cotação do paralelo disparasse. Em alguns lugares, a moeda se vendia a 5,85 ou até a 6 pesos (o oficial está em 4,47). Ou seja, mais de um peso de diferença entre os dois valores.

A revista humorística "Barcelona" ilustrou bem o frenesi que tomou conta dos argentinos. O título de seu número mais recente é: "Com o dólar, não". E o enunciado: "A classe média estaria disposta a aceitar que matem seus filhos para roubar o smartphone, que a inflação aniquile seu poder aquisitivo e que se produza um apagão geral do serviço de telefonia, mas jamais permitiria que suspendam seu irrenunciável direito humano a comprar, vender ou desejar a moeda norte-americana."

Todas as vezes em que houve duas cotações tão díspares do dólar, por exemplo nos anos 30, nos 80 e em 2001, seguiu-se uma crise econômica grave. Cristina Kirchner anunciou na semana passada que não haverá novas medidas. Disposta a cortar subsídios e a deixar a inflação correr solta, ela sabe que a única coisa que os argentinos não vão tolerar é uma mexida brutal no valor do dólar.

Enquanto ela faz de tudo para manter a moeda, da qual depende a estabilidade de seu governo e a continuidade do kirchnerismo, os argentinos vão refinando seus métodos para comprar, guardar e esconder dólares em casa. Junto ao tango e a nostalgia, o "colchon bank" se fortalece hoje como uma das instituições mais argentinas.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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