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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

10/07/2012 - 07h01

Exemplo argentino

Enquanto o Brasil começa agora os trabalhos de sua Comissão da Verdade, para investigar os crimes da última ditadura (1964-1985), ou a Espanha se abstém até hoje de averiguar as mais de 150 mil mortes do franquismo (1939-1975), a Argentina dá um importante exemplo para o mundo.

Na última quinta-feira, onze homens idosos, algemados, de aspecto encurvado e olhar vazio sentaram-se no banco dos réus do tribunal de Comodoro Py. Estavam ali para ouvir as sentenças do julgamento no qual eram acusados de sequestrar e roubar bebês, filhos de militantes anti-ditadura (1976-1983).

O tribunal estava cheio. Compunham a plateia representantes das Avós da Praça de Maio, de outros grupos de direitos humanos e alguns netos recuperados.

A luta das Avós tem mais de 30 anos. O grupo é formado por mães de militantes mortos que buscam o paradeiro de seus netos. Investigam, realizam provas de DNA e encaminham os casos para a Justiça.

Na década de 80, as Avós conseguiram fazer com que alguns repressores fossem condenados pela apropriação de bebês. Porém, o julgamento da semana passada foi muito mais importante.

Não só porque, nele, foram condenados os cabeças da repressão, como os generais Jorge Videla, 86, e Reynaldo Bignone, 84. Mas também porque se deixou de considerar os casos de bebês desaparecidos como fatos isolados, incluindo-os num "plano sistemático".

A distinção faz muita diferença. Segundo as Avós, foram roubados mais de 500 bebês durante o período. Em sua batalha, já foram recuperadas 105 dessas crianças, hoje jovens na faixa dos 30 anos.

O roubo de bebês é o aspecto que melhor distingue o nível elevadíssimo de crueldade da ditadura argentina com relação a outras do continente.

Agora, com a nova sentença, abre-se um importante precedente. Sendo considerado um "plano" e não um conjunto de fatos isolados, o sequestro e roubo de bebês passa a ser inscrito como crime de lesa humanidade. Isso significa que não prescreve e que novos julgamentos podem ocorrer.

Desta vez, foram condenados os cabeças da operação, como Videla, e alguns apropriadores, como Susana Colombo, que criou o filho de um desaparecido e cumprirá uma pena de 15 anos.

A partir de agora, outras apropriações poderão ser julgadas, levando-se em conta os diferentes níveis de envolvimento dos responsáveis.

Para os netos, a situação é difícil. Além de receberem a notícia de que os pais que os criaram não são seus pais biológicos, --em alguns casos, trata-se até dos responsáveis pela morte dos pais verdadeiros-- precisam aceitar uma nova família, mudar o nome, estabelecer novos laços, e alterar, em muitos casos, suas crenças políticas.

No atual processo, vinte deles testemunharam, e alguns assistiram a leitura da sentença aos prantos. Porém, nem todos aceitam tão facilmente ajudar a condenar a quem os criou, e se recusam desde o princípio.

Videla, em sua defesa, respondeu de forma baixa, revoltando a sociedade argentina. Disse que respeitava a luta das Avós, mas que as mulheres grávidas que caíam nas mãos da repressão eram guerrilheiras que usavam os fetos como "escudos humanos".

Há os que questionam a validade desses julgamentos agora. Afinal, esses homens já não têm muitos anos pela frente e, certamente, a essa altura, não terão tempo de cumprir as penas, que vão de 15 a 50 anos. A questão é que o valor simbólico dessas condenações é muito importante. Ajudam a fechar uma ferida, tão latente na Argentina, dos crimes de Estado dos anos 70. Também alertam para a monstruosidade da apropriação dos bebês e dão exemplo a outros países do mundo, que têm dificuldade de levar à Justiça casos semelhantes.

É certo que o governo Cristina Kirchner faz muito uso propagandístico e político desses processos. Isso, porém, não diminui sua importância. Ainda que tarde, a Justiça tem sido feita na Argentina com relação ao período mais sangrento de sua história recente.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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