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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

27/09/2011 - 07h01

Malvinas, 30 anos depois

Numa das cenas mais emotivas de "Um Conto Chinês", filme argentino campeão de bilheteria que está em cartaz em São Paulo, o ator Ricardo Darín mostra ao rapaz chinês com quem é obrigado a conviver uma notícia de abril de 1982, recortada de um jornal.

O título da reportagem que o personagem aponta, "que sozinha já é um absurdo", ironiza Darín, era: "A Argentina está em guerra com a Inglaterra". No filme, o ator interpreta um veterano da Guerra das Malvinas que tem dificuldades de relacionamento com outras pessoas.

A poucos meses de que se completem 30 anos de um dos conflitos mais delirantes da história recente argentina, o tema das ilhas Malvinas segue presente na sociedade e na política locais.

Na semana passada, em seu pronunciamento na ONU, a presidente Cristina Kirchner voltou a subir o tom com relação ao assunto. Disse que o controle das ilhas pelo Reino Unido era uma "ocupação ilegítima" e ameaçou o país europeu com uma possível suspensão dos voos entre o continente e o arquipélago, caso os ingleses continuem se recusando a negociar a entrega das ilhas.

Os ingleses responderam imediatamente, dizendo que não têm "nenhuma dúvida" a respeito da legitimidade de seu comando sobre as ilhas, que chamam de Falklands, e que não vão negociar nada "a menos e até que os habitantes do território assim o desejem". Vivem no arquipélago hoje pouco mais de 3.000 pessoas, todas com cidadania britânica.

Se do ponto de vista da política segue o impasse histórico, do ponto de vista da sociedade as Malvinas são lembradas com um imenso sentimento de frustração.

Não tanto pelo fato de os argentinos estarem privados daquilo que defendem ser parte de seu território nacional, mas principalmente pela lembrança do episódio de delírio patriótico e da imensa e vergonhosa derrota que se seguiu.

As ilhas, que se localizam a cerca de 500km da Patagônia, são motivo de disputa entre nações desde que foram descobertas, no século 16.

Em 1764, franceses fundaram ali uma base naval. No ano seguinte, o fizeram os ingleses. Pouco depois, a França vendeu sua base para a Espanha, e iniciou-se uma disputa entre este país e a Inglaterra.

Em 1820, a Argentina começou uma tentativa de colonizar as ilhas. Até que, em 1833, uma fragata britânica chegou com a intenção de retomá-las para o Império Britânico, obrigando os argentinos a deixarem o local.

Em 1982, o governo militar que comandava a Argentina resolveu, numa atitude apelativa para reafirmar seu poder, invadir as ilhas. O país ia mal economicamente e o general Galtieri viu no chamado à guerra um modo de evocar o patriotismo nacional.

Num primeiro momento, funcionou. Multidões tomaram as ruas e apoiaram a investida das tropas argentinas.

A guerra durou entre 2 de abril e 14 de junho de 1982. As forças eram visivelmente desiguais, e os ingleses venceram de forma rápida, eficaz e convincente. O saldo de mortos foi de 649 no lado argentino contra 255 do lado britânico.

Do ponto de vista político, a consequência mais importante foi acelerar a derrocada da ditadura militar argentina, desmoralizada após o fim trágico do conflito. No ano seguinte, o país voltaria a viver um período democrático, com a eleição de Raúl Alfonsín (UCR).

Para muitos argentinos hoje, voltar a reivindicar as Malvinas soa como uma mera estratégia de propaganda política para angariar apoio popular. Apesar disso, é senso comum a ideia de que a presença inglesa ali é absurda.

O que há de mais preocupante, porém, são as consequências sociais e mais visíveis do conflito. Desde o fim da guerra, a quantidade de veteranos que se suicida cresce de modo espantoso.

Até os dias de hoje já houve mais mortes de ex-soldados por suicídio do que em combate nas próprias ilhas (se não contarmos os mortos à bordo da embarcação Belgrano).

Não há um número oficial de suicidas, mas as associações de ex-combatentes apontam para cifras que variam de 350 a mais de 400.

Esses homens, que na época eram praticamente adolescentes, voltaram da guerra desacreditados, foram esquecidos pela sociedade e de certa forma culpados pela vergonha nacional. Carregam consigo esse fardo por muitos anos, recebendo uma ajuda do Estado muito baixa. A maioria, hoje, vive em condições econômicas bastante precárias.

Um excelente retrato dessa situação está no filme "Iluminados pelo Fogo" (2005), de Tristán Bauer. Também sobre o pesadelo que foi a guerra para os soldados argentinos existe um ótimo livro, editado no Brasil, de Rodolfo Fogwill, "Os Pichiciegos". Ambos ajudam a entender o drama que ainda vivem os que foram enviados a lutar no arquipélago.

Talvez Cristina Kirchner fizesse melhor se cuidasse dessa ferida interna que ainda sangra e faz vítimas, em vez de seguir pedindo em fóruns mundiais a devolução das ilhas. Está claro que sua motivação é autopromover-se, por mais que existam bons argumentos para que as ilhas façam parte da Argentina.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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