Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Lobotomia da alma

DE SÃO PAULO

Foi ao médico para pedir o que chamou de "lobotomia da alma". Mesmo sabendo que a palavra alma, hoje em dia, era um recurso preguiçoso e brega de poeta mediano.

Mas ele estava tão desesperado que não achou outra palavra melhor. Ele queria parar de se sentir desse jeito. Quando num restaurante chegava uma mulher falando muito alto, tinha vontade de explodir o planeta. Depois de falar bem baixinho no ouvido dela "sua histérica sem educação", ele apertaria um botão e: fim da humanidade.

Quando seu grande e absoluto e maior amor da vida da semana sumia por dois longos e tenebrosos dias, ele se sentia uma lama de sebo adernada por panos carcomidos. A única coisa dura e corajosa em seu corpo flácido e desistente era o dedo masoquista: sempre procurando algum sinal de amor, qualquer que fosse o meio de comunicação.

Quando sua mãe andava vagarosa, expondo a realidade dos anos e emoldurando em ouro a morte, ele tinha vontade de se fazer cortes profundos atrás das pernas. Sangrar de joelhos por algo que ele nem sabia o que era.

Quando seu pai teve câncer, ele se trancou no banheiro do hospital e lavou suas mãos 76 vezes e enfiou água pelo nariz 47 vezes até sair tudo. Não sabia o que era tudo. A obsessão com limpeza sempre o atacava quando a tristeza era grande o suficiente para parecer que uma imensa bosta de mamute tinha sido lançada no ventilador do mundo.

Mas até aí ele soava óbvio e quase superficial. O que ganhou mesmo a atenção do doutor foi quando disse que sentia todo o caminho que a comida fazia, desde a jugular até o reto. Sentia o coração batendo nos ouvidos, nos pulmões, nos tornozelos e nos lábios, sempre secos e sangrando. E o coração batia em defeito, o que era pior.

Na sua retina colavam, como insetos ousados, milhões de segundos de frames de tudo o que as pessoas escondiam por trás de tanto botox no bigode chinês. Que fraquezas e podres estavam velados atrás do sorriso que nem conseguia mais ser um sorriso?

Das 24 horas do dia, umas 20 ele tinha que se haver com um enjoo cruel e paralisante. Nas outras ele dormia pra tentar parar de sentir. Mas sonhava incessantemente com um enjoo cruel e paralisante.

Tinha tanta vontade de correr nu pela Paulista como um protesto solitário e egocêntrico de amor à sua existência, que acabava só tendo diarreia nervosa e chorando. Ele começou a apertar o dedo indicador no dedão pra "fechar o corpo", porque sentia tanto que começou a achar que pegava emprestado dos outros. Ele sentia o ebola chegando.

Venlafaxina, clonazepam, escitalopram e paroxetina. Todo dia, toda hora, até sabe Deus quando. E vai funcionar como uma lobotomia da alma? Ele usou alma de novo, coitado. Tipo isso, o médico respondeu, carimbando mais um boi metido a sentimental.

Ele mija escovando os dentes. Nem é pra ganhar tempo, é apenas porque sei lá. Na torrada com requeijão light, gosta de respingar um pouco de mel. Almoça com amigos duas vezes na semana. No resto, cozinha pra economizar dinheiro. Prefere frango sem hormônio. Visita os pais aos domingos. Mas se não está a fim, não vai. Gosta de seriados premiados e dos filmes do Judd Apatow e, mesmo não gostando mais de sexo, o pratica vez ou outra. Deu certo.

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