Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Um texto cabeça

DE SÃO PAULO

Fiquei com vontade de ver um filme considerado pela crítica "maduro, porque não é engraçadinho como a maioria dos filmes brasileiros" e cutuquei meu cônjuge: "ó, vamos sábado?". Ele resmungou algo muito parecido com um sim (o amor, antes de qualquer coisa, é a arte de desvendar os hieróglifos sonoros de um homem). Se eu o tivesse cutucado e mostrado uma peça em cartaz com algum comediante, certamente ele rangeria "será?" e eu concordaria "é, num sei". E assim, nós tomaríamos o nosso café sendo um casal super cabeça. Talvez estivesse tocando um jazz, baixinho, na vitrola. Talvez a gente discutisse, mais uma vez, se o cinema nacional está ou não exaurido do argumento "uma mulher neurótica que quer". Ele dizendo que isso é popular, eu citando "Annie Hall". A gente concluindo que existe o meio do caminho "popular bom" (difícil mas possível). E tudo culminaria em minha frequente crise "queria ser ilegível e respeitada por algum crítico literário franco-húngaro, mas sou a mulher que as pessoas chamam pra animar os jantares chatos".

O fato é: tô sendo preconceituosa comigo mesma. E este texto é tipo um auto carinho em minha imensa testa parcialmente encoberta por uma franja lateral inquieta (fruto de um redemoinho revolto, que nem o mais profundo formol apaziguou). Eu escrevo cinema e teatro engraçadinho e mereço o seu, e o meu, respeito. E o diminutivo "engraçadinho" é só pra eu parecer humilde (porque não parecer humilde em coluna de jornal é pedir pra levar muita pedrada e eu sou sensível), mas eu acredito, e se isso parecer metido dane-se, que lotar um teatro com 500 pessoas rindo sem parar, todos os finais de semana, é legal pra caramba.

E não foi nem um pouco fácil. Durante mais de um ano eu fiz 743 tratamentos nessa peça, testei falando alto, andando pela minha sala, cada diálogo como uma louca solitária esquizoide que trava angústias verbais com um gato vesgo que desistiu de gemer nas madrugadas, porque o orgasmo não chega fácil para quem é muito cerebral. Eu tô falando do gato.

Não entendo porque "um filme niilista sobre um homem misterioso, silencioso, que guarda um segredo misterioso e silencioso sobre uma vida niilista cheia de mistério e silêncio" é um roteiro muuuuuuito mais difícil e complicado do que "um casal quebrando o cacete numa lua de mel". Só vamos lembrar que, no primeiro exemplo citado, o filme terá apenas cinco diálogos e, certamente, não teremos muito bem definidos apresentação do problema, conflito de fim de segundo ato e resolução. Coisas que dão um trabalho danado.

Eu sei que num primeiro momento parece piada o que eu tô falando (sorry, é mais forte do que eu), mas o papo é muito sério e, se me permitem, profundo. Às vezes você está numa festa e, de repente, se apaixona por uma menina sombria, fumando na varanda, olhando com entrega pro horizonte. Sua fantasia intelectual automaticamente a transforma numa personagem melancólica, erudita e tarada. Mas, ledo engano de sua criatividade de diretor francês, Dani é apenas meio burra, estrábica e, acometida por um forte movimento peristáltico, resolveu se livrar, ao mesmo tempo, da rodinha de gente falando e de um pum. Ela não está vislumbrando um ponto longínquo pra refletir sobre a morte, ela está se concentrando pro peido não sair muito alto. E você se apaixonou porque viu tudo em preto e branco noir. Coitado. A palhaça verborrágica a seu lado, promovendo auto ironias não muito sensuais só pra te ver sorrir, dá de mil a zero na sexy blasé da varanda. Vai por mim! A comédia não é uma arte menor. Escrever humor não é fácil. Rir de boas piadas não é coisa de audiência burra. Eu vou ver o filme cabeça no sábado mas, se eu fosse você, iria ver o Porchat.

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