Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

É Natal (e a culpa não é sua)

Natal, esse momento maravilhoso em que o seu coração está inundado em culpa católica e você olha pra sua família inteira achando que poderia resolver o problema de todos se não fosse uma péssima pessoa. Na teoria, Natal é pra comemorar o nascimento de Jesus mas, na prática, a gente acaba se achando Deus. Papai não teria refluxo estomacal se você tivesse mais tempo pra ele (e pra fazer feira pra ele e comida e lavar a louça). Sua mãe não teria enxaqueca se você, em vez de ter um trabalho e uma vida, dedicasse pelo menos dez horas do seu dia em massagear seu crânio. Seu avô não teria caído na cozinha se você, em vez de morar em São Paulo em um apartamento bonitinho na zona oeste, morasse com ele naquela casinha no interior e o vigiasse 24 horas por dia. Sua família sofre APENAS porque você, egoísta e mal agradecido, resolveu deixá-los à sorte de suas próprias escolhas.

Além de dar amor (e uma graninha), não há nada que se possa fazer (eu sei, é frustrante) pra sua avó parar de falar em dor e doença. Isso nos "bons dias", porque na maior parte do tempo ela gosta mesmo é de proferir o mantra "por que não morro logo? Seria MELHOR pra todos". Mas, ao ouvir isso, você (seu coração católico piorado pela noite do Natal) logo pensa ser o culpado. Aquele dia que você dormiu no sofá e ela queria conversar. Foi você!

Titia intensificou o racismo, mas a culpa é sua. Se você fosse um reacinha tapado, nem repararia quando ela disse "Precisa ver que beleza Santos: só carrão e uma 'gente bonita' andando no calçadão!". Você é que vê maldade na maldade dela. A sua prima gorda e invejosa... adivinhe! Culpa sua! Você olha o lordo adiposo que ela tem na lombar e seu peito pesa em dor: aos seis anos você a viciou em Alpino. Foi você! Você disse "come que é bom pacas" e a orca nunca mais parou, porque confiou em você. Agora ela se odeia e odeia todo mundo e odeia especialmente você mas, no fundo, embaixo da lasanha com bacalhau e risoto com carne que ela mandou pra dentro, ela é uma boa pessoa. A vaca é você.

Feita a crônica mais cínica (se não fosse o esconderijo iluminado do humor -e o antidepressivo e a terapia- talvez eu estivesse agora nua e sangrando no chão da sua sala querendo lhe culpar por tudo) vamos a um parágrafo mais fofolete.

Lolita, meu amor, minha primeira cachorrinha. Ela chegou pra "me curar de uma desilusão amorosa" e ao longo de 11 anos e meio me transformou numa pessoa mais doce e paciente com toda a espécie viva do planeta. Lolitinha morreu há três dias, mas não sem antes (sorry, vem aqui um momento piegas e eu estou chorando) promover um verdadeiro milagre natalino: eu consegui dar ininterrupto e verdadeiro amor, por 72 horas mágicas, para a senhora minha mãe. Mamy é o tipo de pessoa que espera ansiosa e saudosa pela minha presença, mas nunca sabe direito o que fazer com ela.

E pra acabar com essa angústia de me amar tanto e de precisar tanto do meu amor, ela solta uns "você é testuda" ou, o pior, "você não tá nem aí pra nada" (justo eu que estou aí até demais pra tudo o tempo todo e de um tamanho maior do que aguento e, vai ver por isso, tanta fisioterapia).

Mas, por 72 horas (que acabaram agora: ela fechou o tempo sem explicação e foi embora como se eu tivesse feito alguma besteira- e eu sempre caio, achando que fiz mesmo) eu consegui abraçar, presentear, cuidar e alegrar mamãe sem que ela deixasse claro, com suas sobrancelhas eternamente desagradadas, que tudo é em vão e que eu sou uma incompetente na arte de amá-la. Ontem mamy sorriu e disse "obrigada" e eu ouvi fogos. Obrigada, Lolita.

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