Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Edilayne

Foi em Cannes que nossa relação começou a degringolar. Eu estava lá a trabalho, mas Edilayne insistia em me atrasar, instagramando mil vezes a vista do quarto, ficando horas na hidromassagem com zilhões de botões (até os dedos virarem uvas passas vencidas, ainda mais massacrados pelas unhas de um pink vulgar) e futucar como uma criança precocemente libidinosa o controle remoto especial para ajustar o blackout da cortina.

A princípio, fiquei meio assim de levar Edilayne, mas não teve jeito. Quando percebi, ela estava me envergonhando, por exemplo, no café da manhã. Ela começou a rinchavelhar quando percebeu que o banquete tomava o que seria um espaço maior do que duas vezes o seu apartamento. Edilayne enfiou três tipos de queijo em um sanduíche que era metade um tipo de pão, metade outro tipo de pão e deu uma golada no suco (mistura de duas frutas) por cima de tudo, fazendo uma argamassa grosseira que machucaria sua faringe (uma inflamação que duraria dias). Ela queria tão intensamente curtir cada requinte e abundância, que acabou doente no segundo dia. Uma doença que chamei de "deslumbramento mendicante" e ela nem retrucou, ocupada que estava em usufruir destemperadamente das benesses de uma boa vida.

Voltei decidida a nunca mais levar Edilayne nas viagens de trabalho, nas reuniões em produtoras, nas festas em editoras, nas palestras no Projac, nos Natais em família, nas casas de amigos, nos jantares românticos, para as camas de morenos cínicos. Ela se ofendeu de morte com a rejeição e declarou a mim (com a veemência ilimitada de uma descendente de italianos sem berço) uma vingança aterradora. Cada vez que eu tentasse encobrir Edylaine, cada vez que eu tentasse escondê-la para debaixo de um tapete persa, cada vez que eu, num tom baixo e cheio de respiros, quisesse me sobrepor ao atropelos gritantes de Edilayne, eu padeceria de um pânico terrível que me paralisaria por completo. Era como se ela dissesse "se você for sem mim, irá também sem saber quem você é".

Comecei falando, na terapia, do que mais me incomodava: a compulsão. A gula, a fome descabida de Edilayne. Estava cansada de ter sempre comigo a mulher pouco refinada, que se entregava, escancarada e destampada (e numa bandeja de plástico) para qualquer situação que pudesse vir acompanhada do subtítulo "aproveita, boba". De homens bonitos a cargas horárias absurdas de trabalho, de banquetes a badernas, Edilayne vivia 78 horas num único dia, enquanto eu só queria entender como levantar da cama.

Edilayne me contava de seu passado de menina sem. Sem trabalho, sem grana, sem rapazes, sem sal. Agora, parasita de todas as minhas boas condições, ela gritava dentro da minha cabeça, uma rouquidão agressiva e feminina, um timbre ao mesmo tempo forte e de esgotamento: "EU VOU À FORRA". Dane-se que você pretende tomar apenas um chá, sorrir entreaberto com (ainda assim muito grandes) meios dentes e ir embora cedo. Eu quero é comer tudo, beber tudo, beijar tudo, falar tudo, escrever sobre tudo, passar mal e ainda pedir uma fritura. Morrer de amor e ainda pegar o irmão do cara. Trepar no lustre e ainda abrir um espacate no meio da pista de dança. Que lustre? Que pista de dança, Edilayne? Nem ela sabe.

Depois de muitos anos de terapia, hoje achei, e peço perdão por esse momento brega, com desfecho autoajuda decepcionante para a literatura, que seria bonito e importante escrever essa frase que vem agora. Eu sou a Edilayne e tenho orgulho disso.

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