Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Culpa

Recentemente viajei a trabalho "de executiva". Confesso que cheguei animada ao aeroporto, ávida por aquelas horas relaxantes e luxuosas, mas já na fila do embarque comecei a sentir um incômodo profundo que me acompanhou por todas as 12 horas do voo: culpa. Muita culpa. Culpa a ponto de eu achar que Deus se vingaria de minha arrogância e faria com que aquele canapé espetacular de atum cru com ovos estivesse estragado e com salmonela. E eu morreria no banheiro chafurdada em fezes soberbas.

A fila de 14 pessoas passou na frente de muitas famílias que carregavam mais malas e filhos do que eles pareciam aguentar (no olhar de uma mãe cansada eu li: morra sua vaca), mulheres grávidas, idosos, bebês, um tio meio manco. Espera aí, Brasil, fiquem quietinhos como gambás enjaulados enquanto os pavões guardam suas malas caríssimas (menos eu, que ainda tenho aquela mala de criança que vem com um chaveirinho de macaco). Tive a certeza de que o avião sofreria um acidente, mas só a área VIP se descolaria pelos ares, arremessando nossos corpos quentinhos e bem hidratados por champanhes e vinhos caros para um sincerão com Jesus, que de muito perto nos observava e achou melhor que cortássemos logo caminho para o Juízo Final. O resto do avião ficaria protegido por nossas mantas gigantescas e felpudas (ah! As mantas da executiva!). Elas fariam uma espécie de isolamento seguro no buraco causado pelo acidente. Já as infinitas penas de gansos de nossos muitos travesseiros fariam uma caminha acolchoada na base do avião. Os milhares de águas Perrier, ofertados como espirros de um alérgico num planeta dominado por gatos, apagariam qualquer fogo. Tudo isso levaria aquelas pessoas mais legais do que eu em segurança para uma ilha com esquilinhos em árvores frondosas.

Depois de maravilhosos foras (exemplo: não sabia que TODAS aquelas comidas seriam servidas e circulei com caneta Bic só as que eu queria e dei pra aeromoça, que fez cara de nojinho) acabei capotando e dormindo o sono dos injustos. Sonhei que meu pai, que mora numa casinha simples na zona leste, ligava pra minha mãe, que mora num apê simples na Pompeia, e eles ficavam horas falando mal de mim. De como eu havia me descolado da família, andava sumida e era uma pessoa muito escrota. Só que eles não sabiam que eu estava ouvindo tudo, numa espécie de linha cruzada macabra, sem poder me defender: "Peraí, gente, trouxe presentes!" Acordei tendo uma crise de choro, às quatro da manhã, me sentindo o ser humano mais solitário do planeta, e um tiozinho empresário (gato, preciso confessar) da "poltrona-cama" ao lado me ofereceu seu cartão "CEO fuckers mundial" e um Frontal –"Também tenho medo de avião". Eu pensei em explicar "eu tenho medo de ficar rica", mas estava cansada demais pra isso.

Essa semana lancei um filme e um livro ditos "comerciais". Quem nunca? Saí sorrindo em colunas sociais e em programas de TV sempre imersa numa culpa gigantesca (é culpa da escola católica onde estudei na infância? É culpa dessa cultura nacional de "se fizer sucesso e der dinheiro é intelectualmente podre e você tem que morrer"?), entrei numa angústia abissal e comecei a ter vontade de andar pelas ruas, toda rasgada: "com licença, perdão?". Desculpa mãe, Brasil, vizinho, mulher da fila do avião, críticos da Folha. Vocês podem me perdoar? Vocês nem lembram que eu existo, eu é que preciso me perdoar.

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