Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Alugada

O apartamento tinha cheiro de carniça. A dona explicou: "É o sol batendo na madeira velha que deixa esse cheiro". Nada. Era cheiro de carniça mesmo, mas eu nunca em vida estive perto de uma, então desisti de brigar pela veracidade do odor. A cozinha tinha muitas pequenas janelas muito altas que abriam (apesar de estarem todas fechadas) pras costas de um prédio. Tentei abrir uma com o cabo da vassoura, pra ver se saía aquele cheiro de carniça, mas estava emperrada. Certeza que nunca abriram aquelas janelas na última década. Se eu fiz força até me dar a famosa dor de cabeça instantânea "desloquei a C7 por falta de força no grande dorsal", imagina se a velhinha que morava ali perdia o tempo tentando abrir aquelas janelas que davam pras costas de um prédio. Eu dormiria no quarto em que dormia a tal velhinha, mãe da dona do apartamento. Perguntei há quanto tempo ela tinha morrido. Perguntei se ela tinha morrido em casa. Perguntei se ela tinha morrido de alguma doença. Começou a ficar ridículo, eu sei, porque estava evidente o que eu queria descobrir: a velhinha morreu nessa cama de alguma doença estranha semana passada? A mulher não respondeu. E eu respeitei isso.

Aliás, ela respondeu só uma coisa: faz dois anos já. O que piorou muito. Se faz dois anos e eu sou a primeira a alugar, esse apartamento deve ser o pior negócio do planeta, deve ter algo gravíssimo escancarado a qualquer adulto que saiba discernir entre viver com decência e chafurdar na lama. Dois anos tentando alugar esse apartamento? A mulher não respondeu e eu respeitei isso. Aliás, ela respondeu, mas foi bem depois, precisou negociar antes, internamente, se eu merecia: "Eu tenho muitos parentes no interior que precisavam de um lugar quando vinham".

Pra me receber "bem", ela tinha comprado uma garrafa grande de água que estava na geladeira. A geladeira tinha também uma Coca-Cola pela metade e sem gás: "Isso é coisa do zelador, que veio arrumar o lavabo e largou aí". O lavabo tinha o desenho do que um dia foi um botão de descarga na parede. Um quadrado cor de ferrugem com um princípio de aguinha seca tatuada, também nessa cor de bosta. "Ele não conseguiu arrumar a tempo, mas é simples". Pensei que ele teve tempo de tomar e esquecer meia Coca ali, mas não de arrumar o lavabo, apesar de ser "simples" –tinha cara de mentira. Certamente o zelador decretou "só quebrando" e ela estava sonegando o contratempo. Ou, mais certeza, ninguém tinha tentado arrumar nada, e ela tinha um amante. E eles se encontravam ali, a cada 20 dias, pra desoprimir mundanidades. Numas dela não assassinar o marido e ele não envenenar a mulher: eles transavam em nome da família. E não tinha nada de parente do interior coisa nenhuma. Ela não alugava o apartamento há dois anos porque, a cada 20 dias (um espaçamento pra dar ritmo de "tem isso", mas não dar liga de amor), eles transavam ali. Será que na cama em que morreu a mãe dela de doença estranha? Vai ver foi o amante que tentou arrumar o lavabo. Porque mulher, por mais moderna que seja, sempre quer algo "de marido antigo" de qualquer homem.

A dona do apartamento me percebeu conjecturando a seu respeito e balançou a cabeça, como se dissesse "você é estranha, mas agora já estamos aqui". E eu respeitei isso. Respeitei numas: "Você vai pagar o conserto do lavabo?". Ela fez um sim tão triste e eu não saberia dizer se pela mãe morta, pelos parentes do interior ou pelo amante. Eu nunca saberia de nada e, apesar disso, era agora a minha casa.

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