Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Sexo culpado

E lá estava ele, comendo gororoba no Vintage. A mesma camiseta de quando saímos pela primeira vez, há mais de uma década. O mesmo tênis de quando terminamos, meses depois que saímos pela primeira vez. Mesmo ele estando com a esposa, uma versão madura da Pocahontas, achei educado cumprimentar. Fui chegando perto e ele foi entortando a cara. Um mix de suco de limão com AVC. Cheguei a estancar meus movimentos –"será que Pocahontas quarentona é ciumenta?"–, mas ele já foi logo se levantando e berrando: "Que merda você fez com seu cabelo?" Quando namoramos, eu tinha uma ou outra mecha loira. Ele detestava, achava um desrespeito ao país, à história de uma nação, a tudo o que sofremos. Eu não entendia a parte em que ele sofreu tanto assim, tendo nascido em uma daquelas casas enormes do Jardim Europa, com mordomo, mas, como estava apaixonada, escureci meu cabelo e comprei papetes. Ele me pedia pra nunca falar, na presença dos seus amigos das ciências sociais, que era publicitária: "Fala que você escreve". Quando a coisa ia debandar pra anel no dedo do pé e colar de golfinho talhado em madeira, resolvi me impor limites. Eu quero ser rica, falei, um dia, de bobeira, pelada no banho. Ele murchou pau e espírito e eu senti, pela maneira como se enrolou na toalha, que nunca mais se desenrolaria pra mim.

Ele morava com outros estudantes, em um muquifo com cheiro de bolsa testicular, perto da estação Júlio Prestes. Quem, aos 25 anos, ainda é estudante e mora numa espécie de abrigo pra estudantes com outros estudantes? Até quando 19 mestrados os protegeriam de meter a mão na massa? Todos arquitetos, de famílias ricas, batiam no peito: "Faço por amor, não quero um centavo". E mangavam de mim, publicitária, de família pobre, virando noites, querendo grana. Só que eu acordava cedo para atravessar a Radial Leste inteira e chegar no trabalho, na esperança de um dia ter um plano médico com pelo menos um Oswaldo Cruz. Eles, sem sair de casa, proclamavam diariamente sua soberba anti-tudo em festas com muita música e pouco papel higiênico –e alguns acabavam, também cedinho, indo tomar soro no Einstein. Eu queria pichar na parede deles, bem entre o demônio com orelhas do Mickey e uma canga com a bandeira da Jamaica: quem paga a empregada é o papai. Pausa. Acho importante frisar ao leitor mais ávido por meter dedos "bondosos" na cara alheia: acho linda a elite esquerdista, talvez hoje eu faça, inclusive, parte dela. Narro apenas a história de um homem perdido, com vergonha de amar uma garota com mechas loiras.

Contudo, a parte de fazer as pazes ouvindo Caetano em fita cassete valia tanto a pena que quase fui com ele pra Bahia de ônibus. Dizem que desafortunados transam melhor. Dizem que "rapazes de esquerda" transam melhor. Nada, quem transa bem são os culpados. A ponto de andar 28 quadras a pé com carro na garagem, a ponto de tomar Coca-Cola escondido com medo que o orientador do mestrado veja. "Você está ridiculamente loira", ele disse, me usando para deleite seu e da Pocahontas com botox. Uma escrava loira para entreter o casal perfeição em sua plástica e publicitária superioridade de feijão com arroz. Se a sua falsa culpa ancestral soubesse o quanto humilhou uma pobre trabalhadora no passado (e desejava repetir o feito)! Fiquei com vontade de perguntar se ele ainda não tinha televisão, micro-ondas, redes sociais, sapato, relógio e celular, mas a verdade é que não me interessava mais. O que ele nunca teve de verdade foi respeito.

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