Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Nunca amei ninguém

Não sei quem deu meu telefone para Clécio, mas ele, ignorando por completo a versão mais atribulada e desinteressada da minha voz, noticiou meu prêmio com o timbre alegre-lobotomizado dos vendedores que confundem boçalidade com ambição: "A senhora foi sorteada e ganhou 70% de desconto na dedetização!"

Expliquei que tinha cachorro, rinite, trabalho, mas Clécio insistiu, dizendo que usaria um gel natural e seria tudo muito rápido. Falei que receberia visitas nos próximos dias, link que Clécio rapidamente usou para falar das "indesejadas" como baratas, ratos, cupins e até mesmo escorpiões. Eu estava prestes a implorar pra desligar o telefone quando fui nocauteada por um golpe baixo: "Isso pra não falar das doenças causadas por bactérias e viroses". Combinamos uma visita "sem compromisso" (a frase que eu mais odeio no mundo, seja para exterminar pragas, escrever um filme ou jantar numa quarta-feira) para a manhã seguinte.

Desmarquei uma reunião e fiquei aguardando Clécio, que estava agendado para às nove, reagendou para às 11 e mandou uma mensagem às três da tarde: "Problemas pessoal". Não gostei de ler aquilo. Então a pessoa te liga, insiste, dá desconto, deixa claro que você é especial, te coloca medo falando de vírus... e não vem? E o que ele quis dizer com "problemas pessoal"! Outra mulher? Mais nova do que eu, mais magra do que eu, com menos dores sacrolombares do que eu.

No dia seguinte nada e no outro dia seguinte, nada. Chegou sexta e nada. Apenas porque a natureza é ao mesmo tempo gloriosa e terrível, naquela específica semana em que Clécio desapareceu, as formigas aumentaram consideravelmente e um filhotinho de barata apareceu no armário dos sapatos. Eu estava ilhada num mundo impuro com meus amigos rastejantes e a rejeição era o nosso principal alimento.

Recém-completados sete dias do descarado sumiço de Clécio, comecei a bombardear seu celular com mensagens que 1) davam o recado; 2) me colocavam em posição superior pra não dar o braço a torcer; 3) traziam alguma leveza para não assustá-lo. Tais quais "estou ocupada, mas tenho horário na quinta, ok?"; "falei com outra empresa e eles combinaram de vir hoje" e "sumiu mesmo, hein, insetobusters?". Clécio não só ignorou todas como, de repente, eu não conseguia mais ver se ele estava on-line. Era a guerra declarada.

Liguei para a dedetizadora e mandei chamar o chefe de Clécio. Eu ia acabar com a vida desse sacana iletrado. Eu tremia de nervoso. Qual era o problema desse cara? Tudo bem que não terminei o mestrado, sem legenda eu perco 40% das piadas e nem três vezes por semana de pilates estão segurando a realidade, mas eu não merecia isso! Me liga, me convence, me dá desconto, me faz sentir especial, fala em bactérias e some?

Clécio estava de férias, mas Edelvânio poderia vir no dia seguinte. Jamais! A obsessão morre, mas não se vulgariza! Quando Clécio volta? Não sabiam informar. Era mentira! Se eu tivesse o sobrenome dele, era jogar no Facebook e descobrir tudinho. Clécio tinha acabado de dar check-in no mictório da firma. Ele estava lá todos esses insuportáveis dias de silêncio, oferecendo descontos, falando de pestes, prometendo visitas sem compromisso, fazendo outras se sentirem especiais. A dor foi tanta que apenas bati o telefone. Da estante vi a barata, ainda infantilizada, mas um pouco mais graúda, me observar.

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