Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

O adulto está em falta

A situação era mais ou menos assim. Eu com um penacho azul que acariciava minha testa (toda hora eu achava que era um mosquito e ficava espantando o nada pra longe) e um minitop de lantejoulas. Marta com um enfeite de dragões na cabeça e o shortinho dourado emprestado de sua irmã mais nova e mais magra.

Faríamos isso mesmo? Não estávamos ridículas? O Brasil não tinha problemas demais pra gente comemorar feito abestadas? Eu não tinha fobia extrema de multidão? Minha pressão baixa sobreviveria ao calor intenso?

Não é perigoso? Não estou velha demais pra isso? Na esperança de que o simples decorrer da manhã respondesse naturalmente essas perguntas, fui comprar repelente na farmácia aqui perto de casa. A atendente, então, respondeu: "O adulto está em falta". Entendi aquela frase como uma mensagem dos deuses. Vá, desgraçada, divirta-se. O adulto está em falta hoje! Abrace as ruas, as pessoas, receba esse sopro de purpurinas prateadas no peito. Sejamos crianças de novo!

Charanga do França, Tô de Bowie, Bloquete, Amigos da Vera Holtz, Tarado Ni Você. A princípio, o cínico blasé "meu medo, minha regras" torce o nariz. Samba, suor e saudade do ar-condicionado silencioso do quarto.

"Nem morto" seria a única camiseta possível para esses dias. Mas esqueçam tudo o que eu falei. Tirei licença poética de mim, emendei o feriado longe da minha personalidade "odeio tudo" e foi das coisas mais bonitas que já aconteceram.

Ao ver milhares de pessoas marchando pela alegria, desbravando a cidade com a segurança de quem diz "apesar de tudo olha eu aqui sambando", alguma coisa aconteceu no meu coração. E eu estava justamente na esquina da Ipiranga com a São João. Tocava Tieta. Existe alguém aqui. Fundo do fundo de você de mim. Das janelas, velhinhos, crianças, casais, tias com braços gordinhos, adolescentes com cara de "minha mãe não deixa ainda", um cara que estava no banheiro, todos acenavam pra nós. Um pequeno Batman de três anos riu quando eu tropecei. Eu estava tão eufórica que só muitas horas depois fui perceber o estrago que a sandália fez no meu calcanhar. A alergia que o colar fez no meu pescoço. As queimaduras do sol no ombro. Meu corpo estava impedido de sentir qualquer dor naquele momento.

Somos mulheres de aproximadamente 40 anos (eu tenho 36, mas sempre, mistério da exceção, arredondo minha idade pra mais), e a ideia era tomar um café da manhã e papear sobre: como é chatinho o feminismo que posta absurdos como "'O último tango em Paris' é a epopeia de um estupro", mas como é lindo o feminismo que esculacha machistas nojentos em bares e exige respeito para cada centímetro de pele à mostra. Como é duro depender de produtoras de cinema que nunca pagam na data, mas como era sacal ter horário pra entrar na firma. Como é desesperador equilibrar o temor de ficar sozinha com o susto de não estar só. Como é angustiante escolher entre esperar o surto de zika passar ou não esperar os óvulos acabarem. Mas não, para tudo, hoje o adulto está em falta. Hoje não é dia de vestir o manto pesado e frio da ponderação, não é dia de dormir de conchinha com o pêndulo extremista das decisões maduras.

Hoje é dia de não saber de nada, de pintar os olhos de forma exagerada, de colocar uma saia muito pequena pra combinar com um decote muito enorme, de poder sair quase pelada. De enfrentar o medo do estupro, da zika, da síndrome de pânico e do tempo. O Carnaval é o grito da coragem. Dancemos!

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