Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Como o Uber me ensinou a ser feliz

Se você, como eu, é um classe média abastadinho (não tenho no banco o equivalente a um apartamento nos Jardins, mas se a casa cair me mantenho por uns meses) culpado (faço laser em manchas de sol e drenagem linfática, coisas absolutamente desnecessárias e fúteis e que dão vergonha de contar pra algum amigo muito de esquerda em algum boteco da Vila Madalena) e sente facadinhas no peito, tamanha incoerência, quando pensa no quanto o país sofre -ou nem precisa ser tão big picture macroeconômico, basta lembrar de uma tia há horas na fila de um hospital, lá pros lados de Itaquera, por causa de um sintoma horrível de morte súbita que não se consagrou em falecimento real posto que era apenas somatização (a angústia e a TV de plasma até chegaram na classe C, mas, mais rápido do que um sonho outonal, tão querendo tirar até isso da gente!)- vai entender aonde eu quero chegar.

Sinto culpa o tempo inteiro (apesar de, como vai reparar o leitor mais crítico, nem por isso refrear meus pequenos luxos). Passo bona no piso de madeira e penso no mendigo lá na calçada. Não bastava ter um chão só meu, ainda o quero reluzente? Recentemente viajei de classe executiva, a trabalho, e passei o voo inteiro achando que Deus me castigaria com uma queda livre. Até concluir que nesse tipo de desastre não morreriam só os espaçosos e reclináveis, mas também a galera que verdadeiramente merece amor e que parcelou em 67 vezes uma passagem pra ficar subjugado feito uma fake sardinha entre desconhecidos que cheiram azedo depois de muitas horas imersos em puns e bafos e oxigênio de mentira. Respirei aliviada, sabendo que meu castigo não passaria de intoxicação aguda devido à quantidade insana de salmão degustado. Confesso que me dá muita solidão e medo (e culpa!), tratados semanalmente em terapia, obter qualquer pequeno sucesso.

Torci o nariz quando apareceu esse tal de Uber. Carrão preto, motorista de terno, água fresca, silêncio. Mas que palhaçada é essa? E o drama do irmão, de pé, no ônibus, sendo encoxado? Neguei por muito tempo o tal aplicativo adorado por todos (inclusive, mistérios humanos, por todos os meus amigos muito de esquerda em bares da Vila Madalena). Eu sempre achei que merecia fritar em um táxi capenga ouvindo um mix de rádio evangélica com as posições políticas do condutor (quase sempre favoráveis ao Maluf). Eu sempre achei que merecia o olhar de ódio do garçom, quando pedia, gentilmente, que ele desviasse o ar-condicionado desumano das minhas costas. Ou, uma vez que o restaurante estivesse vazio, pra sentar numa mesa um pouquinho menos "minúscula, no meio do caminho, na porta do banheiro, com a minha inquieta perna direita roçando, bem pouco desejosa do ato forçado, em perna alheia, talvez de uma velhinha claustrofóbica, da mesa ao lado". O trabalhador estava lá, pra me servir, daí chegava eu, perua desgraçada, e ainda queria ser BEM ATENDIDA? Eu merecia pentelhos no omelete só por ter nascido com plano médico!

Mas o Uber me ensinou a ser feliz. Sim, apesar de nossos dilemas ridículos, de nossos sofrimentos vergonhosos, de nossas taquicardias imbecis, de nossos lencinhos umedecidos e álcoois géis e nutricionistas e tênis Osklen e senhas no Fleury, merecemos ser tratados como gente! Merecemos pagar por um bom serviço! Eu aceitei a água, aceitei comandar a temperatura, o assunto, a música. E, ao final da jornada, surpresa: não cheguei ao inferno.

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