Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Fazer, não fazer, quando der

Acordei essa madrugada com o velho e bom vício que me acompanha desde a infância: fazer listas. Quando minha vida vira uma profusão de incontroláveis ícones semiabertos tremilicando (como se implorassem: vai me deletar ou resolver?), espremidos em um estreito campo de visão, é a hora de vazar a taquicardia para um papel, método mais saudável do que tomar relaxante muscular ou ansiolítico (ou os dois e daí ter que tomar um omeprazol também).

Como não era pouca coisa (e tampouco o era a angústia), dividi a adrenalina em três sulfites: fazer este ano, não fazer este ano, fazer quando der. A lista de não fazer este ano precedeu outra: a lista dos e-mails que eu teria que mandar pedindo desculpas e dizendo que estava atolada e que só conseguiria pro ano que vem. A lista do fazer gerou a lista do "tudo o que eu preciso fazer pra fazer essas coisas que decidi fazer este ano". A lista do quando der tempo trouxe apenas tranquilidade. Mas não durou nada: fiquei olhando pra ela e tentando resgatar um ou dois ou sete itens que me pareceram ter cara de "não custa nada" ou "vai ser bom pra mim".

Feitas as listas todas, começou o tormento. É que, talvez hábito de quem já escreveu novelas, automaticamente comecei a intercalar os núcleos e concluí que, mundo pequeno, todo mundo se conhecia. A lista do "tudo o que eu preciso fazer pra fazer essas coisas que decidi fazer este ano" tinha muitos parentes –só revelados lá pro meio do drama dessa madrugada– morando na lista do "não fazer este ano". A lista dos e-mails que eu precisaria mandar pedindo desculpas e dizendo que estava atolada e que só conseguiria pro ano que vem, tinha amantes na lista do "não custa nada".

Seis da manhã, prematuros, mas saudáveis rebentos (frutos do cruzamento sem proteção das infinitas e poligâmicas listas) já nasciam cheios de imperativos e atrasos, querendo independência sem nem ao certo saber direito a própria filiação. Eu estava cansada e fiz um chá de hortelã. Fechei os olhos um segundo, em meio a berreiros de listas que não cessavam em germinar e tive a brilhante ideia, a lista de todas as listas: "e a vida pessoal, onde fica?".

Naquele momento, ficava no vigésimo terceiro A4 que seria rabiscado com intermináveis "to do" que iam desde "exames de sangue check-up anual completo descobrir um bom clínico geral próximo" até "passar fotos do cel para nuvem: como deixar automático?". O problema é que, quando chegou no afazer "alisar a franja", esse mesmo item abriu o item "mas será que não é isso que está fazendo meu cabelo cair?" que linkou com o item "exames de sangue check-up anual completo descobrir um bom clínico geral próximo". Ou seja, agora o cruzamento era entre entusiastas da mesma família de listas, o que me preocupou um pouco. Que monstruosidades poderiam nascer dali?

Com medo, reparei que o sol nascia, sempre trazendo uma lista de obviedades para os insones. O primeiro item era: dormir melhor. O segundo: quando der tempo, porque vale muito a pena, fazer uma lista de coisas pra não fazer nunca. O problema é que esse último item abriu o item "fazer listas é uma das coisas para não fazer nunca?". E esse item linkou, com o encaixe violento dos apaixonados culpados, com todas as listas e com todos o itens, tornando impossível, para sempre, a desassociação entre tudo que eu tinha pra fazer e tudo que eu nunca faria.

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