Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Minha única dívida é um beijo

Há pelo menos uns dois anos, a cada 15 dias, recebo uma mensagem de texto em meu celular: "Senhor João Deodato, essa é a última chance de pagar as parcelas em atraso com as mesmas condições do carnê!". Esse aviso mais amigável é intercalado com outro que, também há dois anos e a cada 15 dias, aborda de forma mais enérgica a situação: "Senhor João Deodato, evite encargos e que seu contrato seja encaminhado para a assessoria jurídica!".

No começo eu apenas ignorava, movendo as chateações para a lixeira. Mas a tal financeira começou então a me ligar nos piores horários (muito cedo, muito tarde, reunião, avião, almoço sedução) pedindo pelo senhor João Deodato. Sei o sobrenome dele de cor, mas o protegerei nesse texto. Se bem que "de Souza" não é exatamente um complemento que especifique um único ser humano (percebi isso quanto tentei encontrá-lo pela internet). O fato é: incômodo pouco é bobagem, começaram a me telefonar toda semana!

Já expliquei o caso com elegância, com sofreguidão, com a mais completa falta de compostura, com uivos histéricos, imitando uma criança de cinco anos, imitando uma cabra sendo abatida. Já tentei de todas as maneiras provar que eu não sou o senhor João Deodato. Já implorei que deletem meu contato desse mailing de caloteiros: a única coisa que fiquei devendo (e até hoje não me conformo) foi um beijo de língua num garoto chamado Felipe, da sexta série B. Ele tinha taquicardias estranhas como eu, do nada, e eu nunca mais o esqueci.

Já lamentei, com maestria, dor e muco, a morte de Deozinho. Nunca mais poderá limpar seu nome, pobre devedor! Suicidou-se por não suportar a culpa de ter dado o celular de outra pessoa na hora de preencher o cadastro em uma financeira com sérios problemas em atualização de sistema. Já engrossei a voz e gritei: sim, eu sou João, o Deodato, e não vou pagar! Se quiser, venha até minha casa e me obrigue! Quero ver se tu é macho! E bati o telefone, experimentando a tal liberdade de gêneros tão em voga.

O problema é que a gente acostuma com tudo nessa vida. Quando passam mais de cinco dias sem a financeira me importunar, fico me perguntando, no banho, enquanto lavo a louça, enquanto rego as plantas (enfim, momentos com água sempre me trazem João Deodato), o que teria acontecido. Teria ele quitado? Teria a financeira falido? Foi a crise? Teria uma boa alma do telemarketing tirado meu celular do cadastro? Teria minha imitação de varão tempestuoso os intimidado pra valer?

Quero muito me livrar dessa situação, mas, ao mesmo tempo, assim como cutucar um cantinho inflamado de unha ou de gengiva, contraí certo vício na exasperação. O que vou colocar nesse espacinho de cérebro, destinado há dois anos, semanalmente, por cruel repetição, a odiar João Deodato e essa financeira?

João Deodato e a tal financeira estiveram comigo nos meus últimos aniversários, amigdalites, brigas com o namorado, lançamentos de filmes, mudanças para o horário de verão, feriado de Finados. A verdade é que não vai ser fácil. Quando um número desconhecido ligar, e eu sair correndo pra atender, na esperança de uma adrenalina colérica, que traumas psíquicos ficarão em meu inconsciente ao constatar que trata-se de uma boa notícia? Ou de um engano! Fica, João Deodato! Solidão é coisa séria e ela também se esconde, não menos esplendorosa, em pequenas e descartáveis histórias como a nossa.

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