Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A donzela da ponte aérea

Escrevo do aeroporto Santos Dumont. Espero a ponte aérea maravilhosa que me devolverá à minha cama depois de 11 horas de reunião. Apesar do cansaço, quero narrar com preciosismo o show circense que acabou de ocorrer, para o deleite dos meus olhos sempre em busca do estranho. O que se passa com um homem quando, sem que ele seja o comandante da situação, o grande maestro da ocasião, é simplesmente escolhido por uma mulher? Que incômodo é esse? Essa aflição, esse teto nos pés, esse tique com a garganta e os cabelos?

Eu lia uma revista quando chegou esse rapaz um pouco bonito, um tanto apressado e com péssimo gosto para sapatos. Eu o olhei (tenho astigmatismo e hipermetropia, mas estava sem os óculos) e tive certeza que era o Márcio, com quem trabalhei há mais de dez anos. O Márcio, na época, aprovou uma campanha que eu desenvolvi para o lançamento de um carro. Depois desse trabalho, minha vida mudou: ganhei aumento, prêmio, pressão alta e a certeza de que não era isso o que eu queria fazer da vida. Em suma, se fosse o Márcio, eu gostaria de cumprimentá-lo e, para tal, dispus-me a encarar o moço.

Não era o Márcio. Ficou óbvio quando outros homens, possivelmente da mesma empresa, passaram por ele e o chamaram de "Deco". Mas era tarde demais para interromper meu olhar fixo. Eu estava alucinada com o desempenho teatral da pessoa. Ao se perceber examinado por mim, Deco deu início ao que chamei de "definitivamente não soube lidar".

Primeiro, Deco tentou tirar um pigarro da garganta com urros tão forçadamente másculos que eu achei que ele cuspiria testosterona. Depois, travou uma desavença insana com o cabelo. Ele arrumava a franja pra trás e pra frente e então, profundamente aviltado por uma posição de donzela cortejada, começou a dar uns tapas na cabeça. Por fim, exaurido por estar à mercê de um flerte não instaurado por ele, Deco tirou o paletó e o atirou com certo desprezo no banco. Ali eu senti que ele ganhou alguma confiança. Acho até que assoviou.

Segundos antes de o nosso voo ser anunciado, Deco ligou para uma possível namorada e falou tão alto que a moça dos cookies, próxima a nós, levou a mão ao peito em sobressalto: "Oi amor, tô voltando hoje!". Ele caminhava pelo aeroporto berrando com sua escolhida, como se pudesse macular o ar com graxa: eu mando, eu determino, eu homem. A essa altura, eu já de óculos para ver o número do meu assento, pude perceber que Deco não tinha nada demais. Márcio, sim, era um cara bonitão. Deco tinha a pele oleosa e ombros que, agora sem as ombreiras do paletó, estavam mais para duas bolotas de ossos desistentes. Deco tinha aquele tipo de nariz que você pode até superar um dia, mas jamais amar. Era perfeito, pequeno, empinadinho. Desculpa, mas o bom amante tem uma napa horrenda, algo entre uma ofensa de Deus e um acidente.

Enjoada da minha distração, voltei a ler a revista. A histeria de Deco tinha perdido a graça. Foi quando, sem querer, devolvi ao senhorio seu lugar de macho. Automaticamente, Deco sentiu renascer sua rígida integridade, sua dura moralidade, seu retesado padrão. Ele ainda desfilou umas quatro vezes em torno de mim e eu nada. Sentou-se perto e eu nada. Começou a me defrontar e eu nada. Suavizou o desconforto das bolas com aquela beliscadinha na calça e eu nada. Com a minha mais completa rejeição à sua insignificante pessoa, Deco pode respirar aliviado.

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