Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A saga das duras verdades

Saí da taróloga combinando comigo, pela décima vez, que nunca mais iria a uma taróloga. Agora eu ficaria com essa frase martelando a cabeça até resolver o enigma: "Um ser amado lhe esconde algo que trará muitos problemas". Quem? Quais problemas? Muitos quantos? Quando eles começam? Eu amo alguém? Eu nunca mais iria a uma taróloga.

O primeiro entrevistado foi o namorado. Que palhaçada é essa de me esconder algo? E, pra piorar, me causar muitos problemas? Não sei que problemas, não mude de assunto. Ele começou dizendo que nunca me escondeu nada. Depois, concluiu que obviamente já me escondeu algumas coisas, mas nada grave. Talvez o selinho, aquele de quando quase me traiu, tenha descambado pra uma quase língua. Quem nunca? Talvez tivesse perdido mesmo aquela jaqueta caríssima da Osklen, presente meu de Natal, e a desculpa "tá na casa da minha mãe" fosse, como eu presumia, um embuste. Sim, aquele dia que ele colocou a música da abertura do "Game of Thrones" no último volume e ficou marchando pela casa de cueca e meias não foi só cerveja.

A segunda entrevistada foi mamãe. Os cookies que ela fez não eram totalmente integrais e orgânicos. O apartamento que aluguei no Leblon, aos 25 anos, nunca foi "um achado super barato": ela pagava metade, sem que eu soubesse. Quando eu tinha uns 15 anos, e encontramos o melhor amigo dela na praia, não fora coincidência: eles já namoravam há cinco anos. A real é que ela acha ridículo eu ficar adiando pra engravidar, "na expectativa juvenil de que um dia eu acorde menos juvenil". Sim, tirando o atual, todos os meus outros namorados pareciam gays. Se eu deixasse, a saga das duras verdades duraria mais que uma madrugada inteira. Eram relatos intensos, mas seriam esses a me causar muitos problemas? Talvez o cookie.

Meu pai foi logo desabafando que estava há duas semanas sem tomar o antidepressivo e não aguentava mais esconder isso de mim e do médico. Ele contou que tinha uma nova paquera, conheceu num aplicativo de celular, e o remédio o deixava "menos animado". Tá, mas e algo que você tenha feito recentemente, e escondido de mim, que possa me gerar muitos problemas? Ele pensou, pensou, e acabou confessando: eu achei o dicionário de psicanálise da Roudinesco, mas era um bitelão pesado e eu pensei "ela não vai ler isso nem a pau, conheço bem" e acabei te comprando flores.

Fiz um jantar em casa, embebedei os melhores amigos, e mandei na lata: vai, gente, me conta tudo. Descobri coisas óbvias como "ninguém é feliz no casamento", "ninguém é feliz depois do casamento" e "ninguém é feliz antes de casar". Por isso, e não por conta do calor que findou mais agressivo que o fim da infância, eles não se moviam e eu não me movia. Ficamos chumbados no sofá, embaixo de cobertas, abraçados à constatação de que não havia pra onde correr.

No quesito "pessoas que eu amo", agora só restava eu mesma. Tenho psicanalista lacaniana, psiquiatra junguiano, dois ex-namorados freudianos e estudo no Instituto Sedes Sapientiae de psicanálise. Restaria a mim algum espaço para o autoengano? Sou bissexual? Quem nunca? Gosto mais de dinheiro do que de prêmio em festival cabeça? Quem nunca? O sol manchou meu buço e parece que tenho um bigode bizarro? Quem nunca? Ontem, depois de quebrarem meu banheiro inteiro à procura do mau cheiro, encontrei um cocô centenário da Chiquinha, minha cachorra, escondido atrás do armário. Voltarei nessa taróloga.

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