Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

O pós-venda do sexo casual

Imagine que você tem uma amiga divertida e cheia de assuntos do seu interesse. Imagine que, por toda a sua vida adulta, você jamais evitou o prazer despretensioso de estar perto dela. Agora imagine que, de bobeira, apenas porque vamos todos morrer e ela também assim o quis, você resolveu dar uma transada marota com essa moça adorável.

Pois muito bem, é isso que eu quero entender. Exatamente essa cara que você fez agora. Essa cara de "eita!". Me explique. Que esquisitinho é esse que se instaurou em seu peito outrora queridão? Que ameaça tremenda é essa que um mero "oi" no WhatsApp pode causar? Que "pelo amor de Deus tirem essa prova viva de que gozo por aí" é esse, tão abissal, que você não pode abraçar com afeto o seu "gozo por aí"?

O que pode acontecer se, meu Deus, aff que difícil, ui que terrível, nossa que colite nervosa louca, você continuar amigo da senhorita com vagina que, apesar de ter sim um corpo nu agora irremediavelmente reconhecível por baixo daquela roupa, só gostaria de, às vezes, lembrá-lo que a intimidade recém adquirida tem bem pouco a ver com compromisso, mas sim com a celebração de um pacto de momento (que por isso mesmo não é pacto e, por isso mesmo, merece comemoração). Festejar o "gozo por aí" é brindar ao "pequeno amor que não deu em nada" e é preciso ter muita delicadeza de intenções para se emocionar com tamanha perfeição.

Crédito: Divulgação/Imovision Cena do filme "Dois Amigos", de 2014, dirigido por Louis Garrel
Cena do filme "Dois Amigos", de 2014, dirigido por Louis Garrel

Onde, em pleno "falta pouco pra 2017", está escrito que a tal senhorita vai querer trocar alianças, fazer pequenos filhotes humanos com seus fluídos ou conhecer um daqueles parentes que abraçam como se o estômago alheio fosse um esconderijo para a dor de terem virado um daqueles parentes? Onde está sacramentado que após a perversão vem o desespero de enlaçar um "gozo por aí" em motivos mais inocentados?

Por que você gostava dela te contando, por tantas madrugadas, sobre medo de Ano Novo, de peixe estragado, de sentir um negócio não catalogado (e sobretudo de não sentir algo não catalogado) e agora, só porque a encarou por outro ângulo, tudo lhe pareceu "um tanto demais pra sua vidinha de homem com expectativas ordenadas"? Entenda, vocês falaram tantas obscuridades, tantas maldades que você não contaria pra ninguém. Falaram daquele "segundinho antes de ficar louco de verdade" que dá muita vertigem e arrogância. E agora vai correr de uma grutazinha úmida? Ou do que você fantasia serem as exigências loucas da pós-grutazinha úmida? Se você acha que vão lhe cobrar uma espécie de "pós-venda do sexo casual", é você que se considera um objeto.

Nem toda mulher está em busca de um amor salvador. Eu tenho sete médicos do Sírio-Libanês que, quando bem pagos, me colocam em suas macas e explicam: "Ninguém morre dessas coisas que todo mundo tem". E estou bem satisfeita com esse meu elitizado fetiche infantil. Não sou uma mulher em busca de um amor pavimentado ou sentido físico. Tenho aqui, em excelentes e próprios metros quadrados, um encontro tão profundo com meu Word que, "você é tudo pra mim" seria uma belíssima frase que eu jamais diria. Do pequeno amor que não deu em nada eu só queria a liberdade de saber que, em algum lugar sagrado de nossa afinada não continuação tradicional, seguíamos com nossa secreta continuidade atmosférica. A querência sem delírio, o desvelo sem apego, o desejo sem arrebatamento, a intensidade sem ressaca. Enfim, algo divino e honesto chamado: "Dividir um lanche, falar mal dos outros, talvez mais alguma coisa".

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