Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Luana

Minha amiga me indicou uma designer de sobrancelhas dizendo: "Ela faz milagres". Sempre lanço meu olhar de "pessoa superior" a essas promessas idiotas de "melhore sua aparência em minutos", mas dois dias depois lá estou eu sentada em alguma sala de espera.

Tenho quatro fiapos claros e falhos em cima de cada pálpebra. Não tenho uma quantidade de pelos suficientes para que alguém, ao manuseá-los, alcance qualquer consagração. Pouco tem pra tirar, nada tem pra nascer. Só me resta, em dias de festas, tingir (e engrossar) as penugens. Certa feita jantei com um moço que, tendo me conhecido havia cinco dias em um aniversário, se sentiu completamente enganado: peraí, mas no sábado você tinha sobrancelhas! Eu disse que era "a luz do restaurante", mas não o convenci. Ele nem quis pedir a sobremesa e rapidamente me desovou em casa.

Crédito: 3.set.2015/Divulgação Fotografia de arquivo da artista mexicana Frida Kahlo
Fotografia de arquivo da artista mexicana Frida Kahlo

Minha adolescência não foi nem um pouco fácil. No auge da diva Malu Mader, eu era a mais "dessobrancelhada" de uma escola com mais de mil alunos. Um dia, não suportando mais a angústia da minha castração facial, roubei um lápis de maquiagem de minha mãe e me desenhei duas enormes taturanas. Eram largas desgraças que saíam do meio da testa e iam até as orelhas. Cheguei na escola crente de que todos apenas pensariam "nossa, finalmente elas nasceram" (assim como naquele ano me nasceriam os seios) e não que eu estava dormindo de conchinha com a demência. Fizeram fila na porta da minha classe pra rir e um professor autorizou que eu ficasse no banheiro o tempo que precisasse pra "tirar aquela palhaçada".

Luana, a designer, estava desinfetando uma tesourinha quando cheguei. Ela estava insuportavelmente feliz desinfetando aquela tesourinha e essa simplicidade me deu um gostosinho molengo atrás dos joelhos. Ao encarar meus supercílios (que de super não têm nada) sem qualquer disfarce colorido, Luana se comoveu positivamente: "Que delicada!". Ela viu beleza onde antes só havia dor.

Luana cantarolava uma música americana dançante do tipo "a mais votada da Jovem Pan" e chupava uma bala de menta grandona (a qual lhe exigia, de tempos em tempos, um balé bucal perfumado). Luana devia ter uns 25 anos e seus cabelos tinham cheiro de quem tomou banho de touca antes de ir pro trabalho. A soma dessas coisas tão humanas e mais a proximidade do seu decote na minha fuça foram preenchendo aquele pequeno quarto com batimentos cardíacos e suspiros. Mesmo Luana ostentando o tipo de tatuagem mais horrenda que um ser humano pode ter (uma catástrofe de caveiras misturadas a monstros e corações e rostos indígenas e borboletas e âncoras e frases em japonês e rosetas e tribais e muitas flores. Uma espécie de manga comprida de pele colorida interligando ombro e punho em clichês desconexos e terríveis), me peguei cantarolando a música junto com ela.

Luana me explicou que o seu método era muito natural e durava três semanas. Eu topei sem medo, mas, verdade seja dita, eu teria entrado em um ônibus clandestino para o interior do Acre com aquela mulher. Ela arrancou as indesejadas e tingiu as "que respeitavam o meu desenho" de "loiro escuro" mesmo achando que o "castanho claro" daria conta. Ela explicava essas tolices com tanto esmero e apaziguamento que eu desejei ser inteira submersa em tintas e durar, de forma muito natural, mais três semanas. Ao final, paguei e voltei para a minha triste vida heterossexual com moços que nunca souberam valorizar ou cuidar das minhas delicadezas.

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