É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.
Suco em Túnis
Tudo estava preparado para que nada mais acontecesse. Desde que os islamistas do Al Nahda ganharam a primeira eleição pós-revolução tunisiana, o jogo parecia armado.
Bastaria que eles controlassem por alguns anos suas demandas de islamização da sociedade, enquanto construíam paulatinamente políticas sociais capazes de minorar a extrema pobreza de grande parte da população. O impacto da melhoria econômica seria um capital valioso para o partido consolidar-se no poder, tendo então mãos mais livres. Mas a astúcia da história conta com o fato de o bom-senso político não ser a coisa mais bem partilhada do mundo.
Sem o esperado combate direto à pobreza e deixando os salafistas atuarem de maneira cada vez mais brutal, o Al Nahda permitiu que a oposição laica se unificasse, despertando um sentimento de desconfiança em relação à religião que se confunde com a formação da Tunísia moderna.
Os debates sobre laicidade atravessam a história tunisiana como em nenhum outro país árabe e têm raízes em sua própria tradição. Dificilmente encontraremos outro país onde poderíamos ver, na TV, o artífice da independência (no caso, Habib Bourguiba) bebendo suco de laranja em pleno dia, no Ramadã, mostrando ostensivamente não respeitar o preceito do jejum. A metáfora era clara: "Precisamos de menos religião e de mais desenvolvimento econômico".
Agora, com o assassinato do líder esquerdista Chokri Belaid, a Tunísia esta às portas da crise institucional. Diante da primeira greve geral desde 1978, o primeiro-ministro, Hamadi Jebali, afirmou que dissolverá seu governo para formar outro, composto basicamente por "tecnocratas apolíticos". No que foi pronta-mente desautorizado por seu próprio partido.
É difícil saber o que ocorrerá. O Al Nahda governava com uma coalizão de dois partidos laicos (Ettakatol e Congresso pela República). O primeiro já abandonou o governo. Sozinho, será impossível aos islamistas fazerem frente a uma oposição unida e mobilizada.
Uma revolução é um processo em que vários sistemas de freios são testados. Primeiro, quando o governo Ben Ali caiu, seus asseclas procuraram se conservar no poder, no que acabaram por ser todos rechaçados. Depois, como eram o grupo político mais organizado, os islamistas souberam se aproveitar da baixa participação popular na primeira eleição livre, assim como da dispersão da oposição, para subirem à cena.
Mas eles não esperavam que, pouco mais de um ano depois, fossem obrigados a ouvir a população gritando: "O povo quer uma nova revolução". No fundo, os islamistas esqueceram que muita gente quis tomar suco de laranja com Bourguiba naquele dia.
VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.
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