É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.
Alguns parecem acreditar que filhos devem ser tratados como propriedade
Dentre as pretensas evidências que parecem influenciar os debates nacionais a respeito da relação entre indivíduos e sociedade civil uma que merece destaque é: "Meus filhos, minhas regras".
A princípio, essa frase tão repetida nos últimos meses parece irrefutável. Contra a sanha do Estado em impor valores e homogeneizar seus cidadãos, haveria de se afirmar a liberdade que as famílias teriam de defender a multiplicidade de suas crenças e a singularidade de seus modos de vida.
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Nesse sentido, "Meus filhos, minhas regras" parece querer realizar a famosa afirmação da finada Margaret Thatcher: "Não existe essa coisa de sociedade, existem apenas indivíduos e famílias". Mas temos o direito de colocar uma pergunta relativamente impertinente, a saber: você tem realmente certeza de que os filhos são "seus"?
Não que se trate aqui de colocar questões a respeito de relações de filiação, se os filhos são seus ou de outras pessoas, mas talvez seja o caso de perguntar sobre o que são exatamente relações de filiação.
Uma relação de filiação equivale a uma relação de propriedade? Pois vejam como quem fala "são MEUS filhos" nesse contexto parece querer dizer algo como: "eles são minha propriedade, tenho sobre eles direitos quase equivalentes aos direitos que tenho diante dos bens dos quais sou proprietário".
Assim, eu poderia impor a eles regras que bem entender (a não ser em casos humilhantes e ligados a alguma violência previstos na lei).
De fato, no direito romano, os filhos equivaliam a propriedades do pai. Este por sua vez, na condição de "pater familias", era o único com capacidade legal de firmar contratos e ter propriedade. Dessa forma, os filhos e filhas dependiam do destino do pai para enfim alcançar a condição de pessoa no sentido jurídico pleno. Normalmente, enquanto o pai não morria, os filhos estavam submetidos até ao direito de vida e morte fornecido a ele.
Claro que não estamos mais na Roma antiga, mas é bastante sintomático que alguns continuem a pensar relações intersubjetivas como se estivéssemos a falar de relações de proprietários. Talvez eles ainda não tenham alcançado a distinção entre coisas e pessoas. Pois, de certa forma, os filhos não são "meus". Na verdade, os filhos são de ninguém. Os filhos são aquilo que eles se tornarão e não devem estar sob o absolutismo de suas famílias, com suas neuroses, limitações e preconceitos.
É para garantir a liberdade dos filhos em relação às suas famílias que devemos lembrar, contrariamente ao que falava a finada Thatcher, que a sociedade existe. Pois se as "regras" que você impõe ao seu filho forem ruins, se seus valores forem ruins, toda a sociedade sofrerá. É ela que, ao fim e ao cabo, pagará, e muitas vezes caro, por tais escolhas.
Mas você poderá se perguntar, com toda razão: e quem afinal decidirá se as regras são boas ou ruins? Quem será alçado à condição de legislador? De fato, uma sociedade democrática evitará ao máximo definir sobre conteúdos normativos, mas ela definirá um princípio geral que é a própria essência do que entendemos por república.
Uma sociedade republicana e democrática é, acima de tudo, aquela que compreende a igualdade como seu valor fundamental e que lutará com todas as suas forças contra todo princípio que quebre a relação igualitária entre seus membros, seja esse princípio econômico, social ou cultural.
É o respeito à igualdade que definirá os valores que a sociedade permite circular em seu seio. Pois ela não aceitará nenhum valor que perpetue relações desiguais entre seus membros, estejam tais valores enunciados sob a forma de proposições sobre raça, gênero, classe, nacionalidade ou religião.
A realização de tal princípio exige uma tensão sempre renovada, mas é ele que guia (ou que deveria guiar) nossos embates.
Notem que, nesse contexto, o contrário da igualdade nunca foi nem nunca poderia ser a diferença. O contrário da igualdade é a desigualdade. A diferença só é possível lá onde a igualdade impera, pois ela garante que todas as diferenças serão acolhidas em um campo comum.
Ou seja, a igualdade permite a consolidação de uma indiferença acolhedora de todas as diferenças. Agora, a boa questão é: esses que clamam "meus filhos, minhas regras" querem, de fato, isso?
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