Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo
Descrição de chapéu Portugal

Dividido entre o monástico e o majestoso, escolhi ficar com o divino

Crédito: Andrea Schaffer/Flickr/Creative Commons SAO PAULO/SP BRASIL. 21/01/2018 - Leandra Leal no pre-Carnaval neste domingo no ensaio do Acadêmicos do Baixo Augusta.(foto: Zanone Fraissat/FOLHAPRESS, COTIDIANO)***EXCLUSIVO***
Encosta na cidade italiana de Taormina, na região da Sicília

Eu estava entre o monástico e o majestoso. O lugar e todo o seu entorno certamente pediam o segundo adjetivo. A vista que mais chamava a atenção era a do penhasco que me separava do mar Mediterrâneo.

Na área do hotel aonde eu acabara de chegar, havia um jardim que de tão bem cuidado parecia real –menos na sua ligação com a realidade do que com um cenário de realeza (e, sim, de majestade).

O tratamento era de fato digno de uma corte –a ponto de eu até estranhar o fato de ninguém se dirigir a mim como 'sua alteza'. Mas aí quando cheguei ao aposento...

Conduzido por um corredor pouco iluminado, cheguei a um espaço com uma cama estreita, embaixo de um crucifixo, me esperando.

Numa cômoda simples, uma TV, poucos adornos e um silêncio... abençoado! Vinte anos atrás, este era o quarto que eu podia pagar no famoso San Domenico Palace, em Taormina, onde estive numa viagem pela Sicília (Itália).

Visitando o site do hotel 'descubro' nesse antigo mosteiro luxuosas suítes distribuídas pela antiga construção –espaços que eu nem ousava entrar com meu orçamento de então. Mas o luxo nem me fez falta. Circulava pela cidade tão encantado com tudo que, ao recolher-me de noite, o que eu queria era mesmo esse retiro para a reflexão.

Repare que não escrevi 'para a oração'. A austeridade do quarto –e toda a atmosfera solene do hotel (descontando, claro, seus salões outrora simples, mas hoje ricamente decorados)– já remetiam diretamente aos rituais da fé. Havia paz. Mas havia também um pequeno desconforto em lembrar que você dormia num lugar que, durante séculos, servia sobretudo para orar.

Escolhendo hotéis para as próximas férias –que ainda estão distantes, mas, mesmo assim, não há escape melhor do que ocupar a mente livre com projetos para elas–, cruzei por sugestões de hospedagem que me fizeram lembrar não apenas do San Domenico, mas também de um certo convento onde fui comemorar, em 2008, meus 45 anos.

Santa Maria do Bouro, em Amares, foi repensado como uma pousada no roteiro histórico de Portugal pelo premiado arquiteto Eduardo Souto de Moura. Trata-se de um dos lugares mais espetaculares onde já repousei.

À beleza histórica deste convento de mais de cinco séculos, somaram-se as linhas arrojadas e contemporâneas do projeto, resultando num espaço que, sem clemência, demanda veneração, não pelo seu aspecto religioso, mas pela elegância de suas formas.

Portas de ferro modernas se misturam com arcos de pedra antigos, numa experiência que é também, de certa forma, religiosa.

E foi neste cenário –cercado por uma cidade muito simples e uma intensa paisagem do Parque Nacional da Peneda Gerês–, que juntei um punhado de amigos para uma das celebrações mais importantes (e felizes) da minha vida.

Se, mais ainda que no mosteiro em Taormina, a atmosfera da pousada portuguesa inspirava a contemplação, a alegria do punhado de brasileiros circulando pelos amplos salões e escadas da Santa Maria do Bouro serviu como belo contraste.

Sobretudo lembro-me da chegada no meio da noite. Passamos o dia na estrada –a partida foi de Lisboa, rumo ao norte. Jantamos no Porto e, aquecidos pelo vinho que nos fez flertar com a euforia, chegamos ao hotel-convento cheios de 'ahs' e 'ohs'. Se o encontro em si já tinha algo de mágico, o choque daquela visão –com as luzes dramaticamente iluminando laranjeiras e portais– transformou a madrugada num espetáculo feérico.

No meio da excitação, era difícil lembrar que, mais uma vez, eu estava indo dormir num lugar onde a ideia original era rezar. E, novamente dividido entre o monástico e o majestoso, escolhi ficar com o divino.

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