'Há algo mágico em compartilhar comida', diz Michael Pollan
O jornalista americano Michael Pollan, 59, participou de sabatina promovida pela Folha na noite desta segunda-feira (4), na Livraria da Vila do shopping JK Iguatemi.
Sua obra mais recente, "Cozinhar - Uma História Natural da Transformação" (Intrínseca, 448 págs., R$ 49,90), em que ele defende que voltemos a ter o hábito de cozinhar, foi lançada logo após o evento.
Pollan foi entrevistado por Luiza Fecarotta, editora de "Comida" e "Turismo", Marcelo Leite, colunista e repórter especial da Folha, e Teté Ribeiro, editora da Serafina.
Leia a seguir os principais trechos da sabatina.
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Paradoxo do cozinhar
Vivemos o que eu chamo de "paradoxo do cozinhar": gastamos mais tempo assistindo a programas de culinária na TV do que cozinhando.
O fenômeno seria construtivo se os programas encorajassem a cozinhar. Mas muitos são competições; seus logos têm facas afiadas, chamas flamejantes, relógios correndo... Isso assusta.
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Fui um feliz beneficiário de outra realidade, pois minha mãe assistia ao programa da Julia Child à tarde e fazia pratos maravilhoso para o jantar. As pessoas dizem que não têm tempo para cozinhar, e eu respeito isso, mas veja quanto tempo você gasta vendo programas de culinária na TV –agora tente gastar a meia hora de um desses programas cozinhando para você; você vai ter coisas incríveis à mesa.
Hoje, passamos duas horas por dia para fazer algo relativamente novo, que é navegar pela internet. Onde achamos esse tempo? Talvez do tempo que usávamos para ver TV, ou cozinhar. O cerne é que criamos tempo para coisas que julgamos ser importantes –e cozinhar deve ser importante.
Combustível
Apesar disso, estamos em um momento interessante, pode ser o começo de uma luta contra a indústria. Nos últimos 40 anos, esquecemos da comida, passamos a tratá-la como combustível e entretenimento.
Hoje temos a cultura "foodie", gadgets de cozinha, chefs que são celebridades... Trata-se de um interesse sem precedentes pela comida; ainda que possam existir exageros –eu mesmo não tenho muita paciência para a cultura "foodie", isso corrige algo pior, que é a indiferença.
Comer à mesa
Vocês [brasileiros] têm uma tradição maravilhosa de comer de um grande recipiente e compartilhar a comida –moqueca, feijoada. Há algo mágico nisso, com um efeito psicológico, de pôr todas as pessoas no mesmo nível emocional.
Perder a tradição de fazer refeições à mesa não é apenas um problema de saúde –porque estudos mostram que, sozinhos, comemos em maior quantidade. Comida não é só combustível, mas um modo de comunicação, de expressar amor.
Cheio x satisfeito
Nos Estados Unidos ensinamos as crianças a comer até estarem cheias. Não perguntamos se elas estão satisfeitas e, sim: "Você está cheio?". Na França, dizem: "Eu tenho fome" e "Eu não temos mais fome", e isso é muito diferente.
O dilema da carne
É difícil defender o consumo de carne, por motivos éticos e ambientais. Mas eu ainda como carne –duas ou três vezes por semana– e trabalho para defendê-la.
É preciso encarar os problemas que a pecuária traz, e geralmente não fazemos isso; transformamos a carne em commodity, as crianças não sabem que um animal morre para gerar um bife, acham que a carne vem do mercado.
Toda pessoa deveria caçar ou matar um frango para confrontar essa realidade. Eu fiz isso, fui caçar, trabalhei em uma linha de produção de frangos. É uma experiência emocional muito forte e esse tipo de carne eu não como mais.
Eu defendo comer carne porque é algo que nos fez humanos, que está repleto de rituais... Mas esses não são motivos 100% adequados. Defendo seu consumo porque a agricultura verdadeiramente sustentável, em um sistema ecológico, precisa de animais para funcionar bem: plantas alimentam animais, animais alimentam a nós e –com seus dejetos– às plantas... Isso é um ciclo muito importante.
Hoje, quando buscamos saber mais sobre de onde vem a comida, como ela foi feita, sabemos que os melhores fazendeiros dos Estados Unidos são os que fazem coisas diferentes, que liberam seu gado para comer grama e capim, adotam produções orgânicas...
Comer menos carne, aliás, seria um dos meios de ajudar a alimentar a população mundial crescente. É só pensar que, além de desperdiçar 40% dos grãos que produzimos, usamos outros 30% para alimentar animais.
Estímulo
Meu livro não vai resolver todos os problemas. Não o escrevi para pessoas se sentirem culpadas, mas estimuladas.
Estamos em uma bifurcação e sabemos aonde a industrialização da comida está nos levando –50% da população brasileira tem obesidade, há uma epidemia de diabetes... Nos EUA, gastamos US$ 1 trilhão para tratar doenças crônicas ligadas à má alimentação. Isso vai nos levar à falência, haverá um centro de diálise a cada esquina.
Ou mudamos a forma de comer, para algo mais econômico, realista e bonito, ou estamos fadados a piorar ainda mais.
Parece difícil mudar, mas precisamos nos lembrar que mudanças sociais acontecem –com a amamentação foi assim, com o cigarro também. Sou esperançoso.
Crianças
Quando se deu o feminismo, houve uma conversa tensa sobre quem devia cozinhar, se as mulheres ou os homens, e a indústria apareceu dizendo: "Parem de brigar, faremos isso por vocês". O KFC espalhou outdoors pelo país associando sua comida, o fast food, com as aspirações das mulheres. E isso funcionou, a discussão foi interrompida.
Precisamos, agora, terminar essa discussão. A responsabilidade deve ser compartilhada entre homens, mulheres e também as crianças. Cometemos um erro grande de não levá-las para a cozinha.
As técnicas de cozinha precisam ser ensinadas às crianças, inclusive nas escolas –como antigamente, nas aulas de economia doméstica. Cozinhar em família é prazeroso, é tempo de qualidade passado junto. Criar os filhos e não ensiná-los a cozinhar o básico é como não ensiná-los a mexer com dinheiro, não alertá-los sobre as drogas.
Faça você mesmo
Estamos nos tornando muito dependentes da indústria. As pessoas abrem mão de funções que elas mesmas faziam, e o sistema se mostra muito disposto a facilitar as coisas para você. Isso é debilitante.
Você é encorajado a ter uma habilidade, usá-la para sobreviver e deixar o resto –cuidar das crianças, se alimentar, se divertir, fazer exercícios...– para o sistema.
Precisamos voltar a cuidar de nós mesmos. Em casa, tenho uma horta. Não sou autossuficiente com ela, mas tenho orgulho em colher tomates e abobrinhas para o jantar, em saber que posso não depender desse sistema do qual parece ser impossível escapar.
Mesmo que você não faça bem, vai saber como é feito e passar a respeitar muito mais a produção.
Fritas
Não tenho grandes perdições. Sou mais suscetível a coisas gordas do que a sobremesas. Adoro batatas fritas –não as do McDonald's, mas as boas.
Minha regra com elas –e com qualquer "junk food"– é a mesma: coma o quanto quiser, desde que você a faça. Isso, nesse caso, funciona, porque é terrível fazer batatas fritas: faz bagunça, você fica com um monte de óleo e não sabe o que fazer com ele...
Mas é importante fazer você mesmo, porque, quando é a indústria que cozinha, são usados ingredientes que humanos não têm e são grandes os riscos de não ser uma dieta saudável. A indústria usa muito mais açúcar, mais sal e mais gordura. O mesmo se dá com restaurantes.
A indústria usa poucos ingredientes naturais e põe sabores artificiais, cores artificiais e aditivos que fazem a comida durar por meses; quando é você cozinhando, você compra os melhores ingredientes e, até por estar sem tempo, faz a receita de maneira simples e saudável.
Comida brasileira
Fui a uma churrascaria, no Rio, onde não se via o sujeito preparando a carne, mas os garçons vinham à mesa e cortavam fatias e mais fatias de carne. Não foi minha melhor refeição no Brasil, tive mais sorte com os peixes –comi peixes maravilhosos.
Quero jantar no D.O.M., que é algo de que todos falam nos Estados Unidos. Mas não gosto de restaurantes chiques, minha pegada é comida tradicional.
Então, comi moquecas deliciosas em Salvador, feijoada, muito palmito. O Brasil tem uma das grandes tradições culinárias do mundo. E o que levo daqui me abriu os olhos, vocês têm coisas maravilhosas a defender, uma tradição importante, de pratos compartilhados, como a moqueca.
Não vou criticar nenhum prato de vocês [sobre a polêmica de Jamie Oliver com os brigadeiros], até porque não experimentei brigadeiros –sobremesa não é minha praia, e sei que suas sobremesas são muito doces. Mas posso criticar uma bebida: não a caipirinha, nem a cachaça, mas a cerveja. vocês estão fazendo cerveja com milho!
A história do porco Kosher
Quando eu tinha 16 anos, meu pai botou na cabeça que eu gostaria de ter um porco –eu colecionava livros e figurinhas de porcos. Um dia ele voltou do trabalho com uma caixa de sapatos com um porco de 6 semanas. Morávamos em Manhattan, eu não sabia nem se podia ter um cachorro, e tinha um porco. E meu pai sugeriu o nome Kosher –anos depois, aliás, um sujeito de barba, que se disse rabino, me disse que adorou essa história.
E hoje as pessoas me perguntam o que eu fiz com ele, se o comi... Bem, passei o verão com ele, em uma casa de praia, e no final do verão ele estava com 70 kg, não podia voltar a Manhattan. Levei-o a uma feira estadual, de exposição de animais, e ele ganhou em sua categoria –mas só havia ele concorrendo.
Por coincidência, o cantor James Taylor, que à época tinha 22 anos, mas já era um pop star, tinha uma porca chamada Mona, também estava na feira, e eu o conheci lá. Depois, pensei: "James Taylor é a única pessoa que conheço que também tem um porco"; dei um jeito de me encontrar com ele e combinei de doar Kosher a ele.
Quando colocamos Kosher no cercado, na casa de James Taylor, Mona começou a persegui-lo. A princípio, achamos que seria uma disputa sadia, para marcar território ou hierarquia. Mas depois ficou alarmante. Fizemos outra cerca para Kosher e, quando fomos buscá-la de volta, ela estava ao lado de Mona, morta, provavelmente de um ataque cardíaco, por susto. James Taylor se sentiu péssimo e chegou a fazer algo heroico, uma espécie de boca a boca em Kosher –e isso na hora não foi nada engraçado.
No final, ele não conseguiu ressuscitar Kosher. É claro que eu não podia comer meu animal de estimação –o enterramos ali mesmo com o prêmio que ela tinha ganhado na feira estadual.
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POLLAN NO BRASIL
O QUE COMEU
- Em Paraty (RJ): bolinho de queijo defumado com paçoca de banana, bacon e geleia de pimenta-biquinho
- Em Salvador: acarajé ("Comi puro, adorei") e moqueca ("São tantos tipos, e todos deliciosos")
- No Rio: foi a um rodízio de carnes ("Tive mais sorte com os peixes")
O QUE BEBEU
- Cachaça, a bebida preferida
- Cerveja ("Fiquei desapontado com a brasileira, é feita com milho!")
- Suco de frutas; gostou do de papaia com laranja e do de manga; também provou um de cupuaçu em Paraty
QUEM CONHECEU
- O chef David Hertz, da Gastromotiva; Pollan comeu uma "peixoada" feita por um aluno da ONG no morro do Vidigal, no Rio
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade