Preço da carne de wagyu vem de criação cara e da demanda por luxo

Bolsonaro exibiu picanha de R$ 1.799,99; quilo da paleta pode custar menos de R$ 100

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São Paulo

O gado invadiu o Palácio da Alvorada com alarde na semana passada. Mais precisamente, o gado japonês wagyu —materializado numa picanha de R$ 1.799,99/kg, que deu as caras no churrasco presidencial de Dia das Mães.

O valor equivale a 12 vezes o auxílio emergencial pago em 2021 pelo governo para pessoas sem dependentes. Parece um despropósito gastar tanto num bife.

Filé de wagyu grelhado com vegetais da horta e cogumelos, do Ayzomê - Rafael Salvador/Divulgação

Pode ser difícil justificar a despesa, mas o preço da carne se explica pelo altíssimo custo de produção e pela lógica particular que regula o preço dos artigos de luxo.

Para começar, os quase R$ 1.800 cobrados pelo Frigorífico Goiás —que chegou a embalar alguns nacos de bife sob o rótulo “Picanha Mito”— são extorsivos sob qualquer aspecto.

A loja virtual Intermezzo, de São Paulo, vende sua peça mais cara, um contrafilé de wagyu puro-sangue, a R$ 829/kg; a picanha está a R$ 410/kg.

A carne wagyu é valorizadíssima devido ao alto grau de marmoreio —presença de gordura entremeada na fibra muscular, fator determinante para sabor e maciez. Só que, para produzir toda essa gordura, o boi precisa comer muito. Muito, muito mesmo.

“É uma raça com baixa eficiência de campo”, afirma o veterinário Gelson Feijó, pesquisador em ciência da carne da Embrapa Gado de Corte.

Em termos menos técnicos: para atingir o ponto de abate, um animal wagyu demanda muito mais ração do que um nelore ou um angus.

“A suplementação alimentar começa antes mesmo de o bezerro nascer”, diz George Gottheiner, produtor de carne wagyu na Fazenda Bosque Belo.

“No último terço da prenhez, a vaca recebe suplemento de ração para que o filhote tenha predisposição ao marmoreio”, completa.

A superalimentação prossegue por toda a vida do animal, até o confinamento —etapa final da criação do gado de corte, em que o bovino é transferido do pasto para a engorda.

“Enquanto um nelore passa 90 dias confinado, o wagyu de raça pura precisa de pelo menos 250 dias”, conta o produtor George.

Raça, para a denominação wagyu, é um termo tão impreciso quanto universalmente empregado.

“A palavra ‘gyu’ significa ‘gado’, e o prefixo ‘wa’ quer dizer ‘do Japão’ ”, diz Telma Shiraishi, chef do restaurante Aizomê. Logo, wagyu se refere a todo boi de origem japonesa.

A pecuária bovina requer espaço e muita água —ambos escassos no Japão— para a criação em larga escala. Assim, os japoneses sempre trataram a carne como um alimento especial, de produção limitadíssima e caprichada em nível nipônico.

Os bois do Japão quase não se locomovem. Eles passam a vida em um cercadinho, a comer. “Cada região aprimorou os rebanhos a seu modo”, ensina Telma.

Há pelo menos quatro raças bovinas produtoras de carne wagyu. Em comum, todas são conhecidas pelo marmoreio.

Segundo a chef, os japoneses conferem status de segredo industrial aos métodos de criação. “A exportação de touros e sêmen é proibida”, diz. “O que existe no resto do mundo veio por contrabando.”

O fazendeiro George diz que os bois chegaram primeiro aos Estados Unidos, onde a genética wagyu foi replicada, multiplicada e repassada a outros países. John, pai de George, foi um dos pioneiros da criação desse gado no Brasil, ainda nos anos 1990.

“Os japoneses alegam que não existe wagyu fora do Japão”, afirma George, “pois não há garantia da pureza genética desses animais.” É um argumento forte, até porque os cruzamentos com outras raças são praxe —no Brasil e em grandes rebanhos como EUA e Austrália.

A miscigenação preserva boa parte das características da carne wagyu e resulta em animais que engordam mais facilmente. “Criar wagyu puro-sangue é inviável economicamente no Brasil”, diz o veterinário Gelson, da Embrapa.

George insiste nesse nicho, mas com cautela: “De 520 cabeças do meu rebanho, só 70 não têm cruzamento.”

É uma reserva muito especial para um público muito específico, que pode e quer pagar, pela carne, valores incompatíveis com um churrasco de domingo.

No Japão, por sinal, a carne também é cara. “Lá não existe essa coisa de um boi inteiro no prato”, diz Telma. Além do preço, a cultura alimentar leva ao comedimento. “O eixo da refeição não está na proteína, ela é um complemento.”

Segundo a chef, duas formas comuns de consumo do wagyu no Japão são o sashimi e o yakiniku —“churrasco japonês”, tiras de carne assadas à mesa em restaurantes especializados.

Na opinião de Telma, não faz sentido comer essa carne em grandes quantidades.

“Ela é muito gordurosa, pesada, parece um bloco de manteiga.” O churrasqueiro Tom Penafiel, da Chimichurri Parrilla, concorda: “Fica enjoativo e, se bobear, tem mais gordura do que carne.”

Tom, contudo, às vezes serve wagyu em sua churrascaria-boteco argentina. “Eu busco cortes pouco comuns, mais baratos e que são duros em animais de outras raças.”

Quando encontra para comprar, prepara na brasa a aranha da alcatra —recorte da região pélvica, apenas duas peças de mais ou menos 300 gramas por animal.

Carnes extraídas da paleta e do acém podem custar menos de R$ 100 por quilo. Elas são a saída para quem quer provar wagyu sem empenhar as joias de família.

Mesmo George Gottheiner, entusiasta do churrasco de wagyu, diz que os cortes menos famosos são os melhores. “Picanha é o que eu menos recomendo”, afirma. “Coxão duro fica fabuloso e já fiz churrasco até com o músculo, surpreendentemente macio.”

Na fazenda em Boituva (SP), George põe música clássica para tocar para os animais. Ele se inspira nos criadores japoneses, que adotam práticas insólitas como dar cerveja e fazer massagem nos bois.

Isso melhora a carne? “Pode até ser coincidência, mas a produção decaiu quando meu aparelho de som quebrou”, argumenta George. “Essas coisas são como rezar: ou você acredita ou não”, diz o veterinário Gelson.

De qualquer maneira, Beethoven, cerveja e shiatsu agregam valor impalpável à carne dos bois wagyu. “O consumidor também paga pela marca, pela exclusividade”, acredita Gelson.

O pesquisador da Embrapa faz uma comparação com o mercado da moda.

“Você compra uma calça jeans de R$ 50 no comércio popular e outra de R$ 500 na butique do shopping. O produto caro tem acabamento melhor, mas o preço aumenta mais do que o custo e a qualidade. Se você for olhar as etiquetas, as duas calças são feitas com o mesmo brim.”

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