Líder religiosa deixa terreiro na Bahia após disputa familiar na Justiça

Crédito: Manu Dias/AGECOM A Ialorixá Stella de Oxóssi, na Academia de Letras da Bahia
A Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, na Academia de Letras da Bahia

JOÃO PEDRO PITOMBO
DE SALVADOR

Mais influente líder religiosa do candomblé em atividade no país, a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi trocou o trono do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, por uma cadeira de vime em um casarão secular em Nazaré das Farinhas, cidade do Recôncavo Baiano.

Aos 92 anos, 79 deles dedicados ao candomblé e 41 como sacerdotisa do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella abandonou o terreiro após se tornar alvo de uma disputa familiar e de poder que terminou por borrar as fronteiras entre sua vida pessoal e religiosa.

A disputa colocou em lados opostos sua companheira, a psicóloga Graziela Domini, e os membros do Ilê Axé Opô Afonjá, num embate que chegou à Justiça da Bahia.

Em carta assinada por 71 integrantes do terreiro, Graziela é acusada de isolar Mãe Stella e de impedir o acesso de outros filhos de santo e de familiares à religiosa.

"Estamos como órfãos de mãe viva", diz Ribamar Daniel, presidente da Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, entidade civil que atua como mantenedora do terreiro.

Ele diz que Graziela se apropriou e vendeu bens do terreiro, como gravuras do artista plástico Carybé e um ônibus que servia como biblioteca itinerante. Graziela nega.

O caso chegou à polícia, ao Ministério Público da Bahia e, por fim, à Justiça. Na ação movida contra Graziela, a Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá pede a preservação dos bens do terreiro.

Antes da ação judicial, a relação entre a companheira de Mãe Stella e os demais filhos de santo já vinha se deteriorando. Dias antes da mudança para Nazaré, Graziela foi retirada à força da Casa de Xangô, dedicada ao orixá, por filhos de santo.

Companheira de Mãe Stella há 12 anos, Graziela diz que a mudança de cidade foi uma escolha da ialorixá, que estava se sentido desrespeitada na hierarquia do terreiro. E nega que a tenha isolado dos demais filhos de santo.

"Nossa casa estará aberta para quem quiser nos visitar. E aqui viveremos, sem cobranças. Ela está querendo paz", disse à Folha.

SUCESSÃO

Fundado em 1910 pela ialorixá Mãe Aninha, o Ilê Axé Opô Afonjá é um dos terreiros de candomblé mais tradicionais da Bahia.

O local foi frequentado por baianos ilustres como Jorge Amado e Dorival Caymmi, além do artista plástico argentino Carybé e o fotógrafo francês Pierre Verger, radicados na Bahia, que fizeram parte do Conselho de Obás do terreiro -espécie de ministério com voz e voto que auxilia a ialorixá em suas decisões.

Mãe Stella é a quinta ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Ela assumiu o posto em 1976, como sucessora de Mãe Ondina, e se tornou uma das principais líderes religiosas da Bahia.

Enfermeira de formação, tem formação intelectual sólida, escreveu livros e tornou-se membro da Academia de Letras da Bahia em 2013. Desde o ano passado mantém um canal de vídeos no YouTube e lançou um aplicativo para celular com mensagens de cunho espiritual.

Sua saúde debilitou-se nos últimos anos depois que sofreu um acidente vascular cerebral. Mãe Stella perdeu quase toda a visão e se locomove com a ajuda de uma cadeira de rodas. Há cerca de um ano não participa de cultos e festividades do terreiro.

A Folha apurou que a piora em seu estado de saúde abriu uma guerra silenciosa em torno da sua sucessão. Atualmente, pelo menos cinco grupos movimentam-se para suceder Mãe Stella, que não preparou nenhum nome natural ao posto.

No Ilê Axé Opô Afonjá, a sucessão não segue a linha familiar: são os orixás, através do jogo de búzios, quem escolhem a nova ialorixá. Foi assim que Mãe Stella foi escolhida sacerdotisa em 1976, mesmo não sendo parente de Mãe Ondina nem de sua antecessora, Mãe Senhora.

A sucessão foi descrita no livro "Bahia de Todos os Santos" por Jorge Amado. Ele afirmou que, com Stella, o axé do Opô Afonjá retornaria "aos dias gloriosos quando a fama da beleza e da pureza de seu ritual, da imponência das festas corria mundo".

A mudança de Mãe Stella para a cidade de Nazaré, contudo, criou uma situação peculiar no terreiro, já que a sucessão acontece apenas após a morte da ialorixá.

Com ela viva, mas fora da cidade, o Ilê Axé Opô Afonjá segue suas atividades de forma limitada sem a sua sacerdotisa: "Há uma série de decisões que dependem da palavra final de Mãe Stella", afirma Ribamar Daniel.

DISPUTA

Graziela afirma que a ialorixá não tem condições físicas de participar dos ritos e defende que o melhor para ela é afastar-se do dia a dia do terreiro. "O fato de ela querer morar em outra cidade não quer dizer que ela abandonou o cargo de ialorixá. Ela fala diretamente com os orixás", explica.

Enquanto isso, nos bastidores, a discussão sobre o futuro do Ilê Axé Opô Afonjá ganha corpo no ano em que completam-se 80 anos da morte de Mãe Aninha, abrindo aquela que até hoje é lembrada como a mais acirrada e conturbada sucessão em um terreiro da Bahia.

O precedente legou a tradição, lembrada anos depois por Jorge Amado quando da morte de Mãe Senhora, terceira ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá: "Sua sucessão trará outra guerra de santo? Quem vai tomar seu posto no trono de mistérios, quem a sucederá na guarda do segredo? Os cochichos começam no átrio da igreja".

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.