Antes chamado de 'bicha', Caio Bonfim cala ofensas com pódios na marcha

Crédito: Daniel Leal-Olivas/AFP Photo Caio Bonfim ganha a medalha de bronze na prova de 20 quilômetros da marcha atlética
Caio Bonfim ganha a medalha de bronze na prova de 20 km da marcha atlética no Mundial de Londres

PAULO ROBERTO CONDE
DE SÃO PAULO

O treino diário de Caio Bonfim, 26, compreende 30 km de caminhada em ritmo acelerado, e parte da atividade ocorre nas ruas de Sobradinho, ao lado de Brasília.

Não foram poucas as vezes que, nos dez últimos anos, o esforço cotidiano foi acompanhado com interesse pelos locais. Menos pelo fascínio e mais pelo escárnio.

A evolução nas calçadas gerava comentários e outras reações jocosas, porque o esporte que escolheu demanda avançar sem tirar os pés do chão simultaneamente, o que gera movimento de quadril que remete a um rebolado.

Os ouvidos acostumaram-se a gritos de "bicha" e "veado" que satirizavam seu objetivo de se inserir entre os principais atletas da marcha atlética de todo o mundo.

Caio guardou todas as temporadas de insultos homofóbicos que recebeu para ir à forra com conquistas.

O troco começou nos Jogos do Rio. Diante da ânsia generalizada por medalhas, as ofensas deram lugar a apoio que lhe levou à quarta posição na prova de 20 km, a melhor de um brasileiro na marcha atlética em Olimpíadas.

E, assim ele espera, foi dado de vez no último domingo (13), quando obteve a única medalha do país no Mundial de atletismo de Londres (com bronze nos mesmos 20 km).

"Antes da Olimpíada, eu tinha muitos problemas com a questão do preconceito. Só que, desde então, mudou. O som da buzina dos carros é outro. Se antes era gozação e piada, agora é de incentivo", disse Folha o atleta, cujo pódio na Inglaterra foi o primeiro de um marchador do país em Campeonatos Mundiais.

"Depois do Rio, eu consigo marchar na rua e ouvir incentivos. Fico feliz por poder mudar a cultura da sociedade por meio do meu esporte."

Antes de alterar a percepção da marcha atlética perante o grande público, Caio precisou dissolver a rejeição no próprio meio do atletismo.

O processo começou cedo. Ele passou a entender o caminho que teria de percorrer ao ver a mãe, Gianetti, sete vezes campeã nacional, chegar em casa inconformada com a quantidade de ofensas que recebia de seus pares.

"Em viagens de delegação, diziam para ela que a marcha era o patinho feio do atletismo. Mas nunca aceitou isso e passou para mim", disse ele.

O filho levou adiante o desafio proposto pela mãe. Largou o futebol –fez parte das categorias de base do Gama e do Brasiliense– e, com 16 anos, engrenou na marcha. Até hoje é treinado por Gianetti e por seu pai, João Sena.

Com o tempo, viu que apenas pódios dariam prestígio a uma modalidade vista com tamanha indiferença. Foi, então, o que tratou de fazer.

Em 2015, levou bronze nos 20 km no Pan de Toronto. Na mesma temporada, terminou na sexta colocação na prova no Mundial de Pequim e se inseriu como candidato a medalha na Olimpíada de 2016.

O pódio não veio. Porém, o quarto lugar nos 20 km e o nono nos 50 km ratificaram sua posição na elite, o que acabou confirmado em Londres.

"Com bons resultados, eu acho que virei o gatilho", disse. Além dele, outra atleta de destaque no país tem sido Erica Sena, quarta em Londres.

Em que pese a maré positiva, Caio reconhece que a realidade dos marchadores ainda é difícil dentro do país.

Ele conta com apenas um patrocinador, que lhe dá ajuda de custo e calçados, e recebe Bolsa Atleta e apoio do Comitê Olímpico do Brasil.

Recentemente, acabou incluído na relação de atletas contemplados pelo Bolsa Pódio, que pode lhe dar até R$ 15 mil por mês, mas ainda não recebeu nenhum repasse.

Ainda em Londres, pediu a dirigentes da Confederação Brasileira de Atletismo para que "aproveitem o momento". Em bom português, que organizem mais eventos nacionais e abra espaço para o surgimento de marchadores.

O Caso (Clube de Atletismo de Sobradinho), entidade que defende, tem patrocínio simbólico da Caixa e sofre para manter os praticantes.

Graças a Caio, foi estabelecido um projeto de bolsa-auxílio que dá R$ 200 aos competidores do clube. Além disso, a fornecedora de material esportivo que o apoia doa 90 pares de calçados por ano para os esportistas do clube.

"Nós podemos dar cursos e mostrar como a marcha é simples. Tivemos o Guga e o Popó, que foram os melhores do mundo, mas sem sequência. Não quero que a marcha morra comigo", comentou.

Segundo ele, há somente dois eventos de bom porte no Brasil para os atletas. Acostumado a disputar até 12 corridas por ano, geralmente encontra guarida no exterior.

A tendência é que o cenário permaneça igual até 2020, ano dos Jogos de Tóquio. Caio sabe, contudo, que uma medalha olímpica pode contribuir em seu projeto pessoal.

"Ninguém mais do que eu quer a medalha olímpica. Que o bronze em Londres seja só o começo da caminhada."

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