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19/12/2010 - 09h00

Ex-atleta profissional, brasileiro assume seleção canadense de basquete de surdos

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MARCEL MERGUIZO
DE SÃO PAULO

Na hora do jogo, Victor Mansure fica sempre no mesmo lugar, na beira da quadra, ao lado do banco, parado, apenas fazendo gestos.

Ao contrário da maioria dos técnicos de qualquer esporte, ele não grita com seus atletas. Não adiantaria. Por isso, o olho no olho e a atenção nas mãos são importantes, seja nos intervalos seja durante as partidas.

Arquivo Pessoal
Foto do técnico brasileiro Victor Mansure que comanda a seleção do Canadá de basquete para surdos Crédito: Arquivo Pessoal
O técnico brasileiro Victor Mansure conversa por meio de gestos com jogadores surdos, em Montreal (CAN)

Carioca de 27 anos, Mansure fala três línguas (português, inglês e francês). No entanto, teve que (re)aprender todas elas para chegar ao cargo que assumiu há menos de um mês: ele é o novo técnico da seleção canadense de basquete de surdos.

"O contato e a comunicação são muito maiores do que o normal. Os garotos conversam comigo até quando estão com a bola. Eles sabem que precisam me olhar. É um mundo completamente diferente", conta, por telefone à Folha.com o treinador que mora em Montréal, no Canadá, desde 2005.

Ex-jogador das categorias de base da seleção brasileira de basquete --jogou os sul-americanos sub-16 em 1999 e 2000--, Mansure chegou a se profissionalizar no Brasil. Passou pelo Fluminense e outros clubes no Rio, Paraná e Minas Gerais antes de sofrer lesões no ligamento cruzado dos dois joelhos, que abreviaram a carreira.

A família, na mesma época, resolveu se mudar do Rio para Montréal. Mansure foi junto, cursou educação física na Universidade McGill e tentou a volta às quadras. Não deu certo.

Então, viu em um anúncio de emprego na internet a chance de continuar perto do basquete. Precisavam de um técnico para garotos de 14 anos em um centro comunitário perto de sua casa em Montréal. Detalhe: os jovens eram surdos e mudos.

Naquele momento, sem conhecer a linguagem dos sinais, uma pessoa --mesmo distante-- o ajudou.

"Fez toda a diferença conhecer a Cirlene, uma senhora que trabalha há mais de 25 anos na casa da minha avó em Teresópolis (RJ). Ela também é surda e muda, e desde pequeno nós convivemos com ela. Aliás, na última vez que fui visitá-la, ela até se assustou quando mostrei que sabia a linguagem de sinais", recorda o técnico.

Arquivo Pessoal
Foto do técnico brasileiro Victor Mansure que comanda a seleção do Canadá de basquete para surdos crédito: Arquivo pessoal
Mansure conversa na linguagem de sinais com jogadores

DIFICULDADE

No início do trabalho no centro comunitário da Associação Esportiva dos Surdos de Quebéc, o brasileiro precisou de um intérprete. Logo dispensado. Mansure aprendeu a linguagem dos sinais em inglês e francês pela internet e na convivência com os garotos.

"Foi outra dificuldade. Em Montréal, metade da população fala inglês e outra metade fala francês. E, nos sinais, há a mesma diferenciação. Por isso, a gente fala uma espécie de dialeto, tudo misturado mesmo. É uma grande confusão, mas que todo se entende", explica, aos risos.

Tal confusão a que Mansure se refere é contada por ele em um episódio ocorrido durante um treinamento:

"Uma vez, para encerrar o treino, fiz aquele tradicional gesto de 'vamos parar um pouco e podem beber água'. Mas o gesto de beber água é com uma mão aberta e outra fechada, como se estivesse segurando um copo. O que eu fiz, com a mão e o polegar na direção da boca, como se estivesse bebendo algo, significa tomar uma bebida alcoólica. Então eles começaram a rir muito de mim", conta. "Essas pequenas diferenças fazem a comunicação entre nós. Assim, no jogo, preciso do contato visual com eles o tempo todo", lembra o técnico.

SELEÇÃO

Da equipe do centro comunitário, Mansure foi convidado para ser assistente técnico da seleção sub-21 do Canadá. No Mundial da categoria na Polônia, em julho deste ano, os canadenses ficaram em nono entre 12 seleções. Os Estados Unidos foram campeões na final contra a Lituânia.

No fim de novembro, a Associação Esportiva de Surdos do Canadá anunciou o treinador como novo comandante da seleção principal do país que disputará o 3º Campeonato Mundial Adulto de Basquete para Surdos, em Palermo, na Itália, em setembro de 2011.

Na seleção, o brasileiro é voluntário --ou seja, não tem salário, apenas despesas de viagens e alimentação são pagas. Já no centro comunitário recebe por hora/aula, como qualquer professor.

O Brasil também estava se preparando para mandar uma seleção ao Mundial da Itália. No entanto, segundo a Confederação Brasileira de Desportos dos Surdos, por falta de apoio, a equipe disputará apenas o Pan-Americano de Surdos que será em novembro, em Belo Horizonte (MG).

Os brasileiros jamais participaram de um Mundial de Surdos, no entanto, a Confederação sonha com a classificação para a Olimpíada de 2013, em Atenas, na Grécia. Até lá, buscam, inclusive, um técnico.

"Hoje tenho uma posição muito legal aqui, sou um brasileiro técnico da seleção canadense. Mas o objetivo é voltar para o Brasil. Sei que tenho muito a oferecer. Quero ser técnico de equipe profissional. Quem sabe volto e trabalho com basquete de surdos. Potencial o Brasil tem, não falta atleta no país. Até balança meu coração saber que a seleção brasileira de surdos não tem condições de ir para o Mundial. Gostaria muito de ajudar", responde Mansure ao ouvir sobre o seu país.

Nos dias 7 e 8 de janeiro ocorrerá a primeira "peneira" da seleção canadense. O técnico espera cerca de 60 jogadores neste primeiro contato com os atletas.

"Poderia ter mais jogadores, claro. Mas há um teste que mede o nível de audição de cada um. E, para jogar, a surdez precisa ser em um nível acima dos 55 decibéis. A gente sempre perde um ou outro nos testes por essa razão", diz Mansure, que espera um crescimento da modalidade no Canadá e está preparando um projeto, com patrocínio, para democratizar o acesso ao esporte.

Mustafa Ozer/AFP
ORG XMIT: 491101_1.tif Basquete Masculino - Campeonato Mundial de Basquete, 2010: o jogador Leandrinho da seleção brasileira tenta passar por marcação de Miha Zupan (à esq.) e Primoz Brezer (á dir.), da Eslovênia durante partida pelo Campeonato Mundial de Basquete, em Istambul (Turquia). O Brasil foi derrotado por 77 a 80. *** Leandro Barbosa (C) of Brazil vies with Miha Zupan (L) and Primoz Brezec (R) of Slovenia during the preliminary round group B match between Slovenia and Brazil at the FIBA World Basketball Championships at the Abdi Ipekci Arena in Istanbul, on September 1, 2010. AFP PHOTO/ MUSTAFA OZER
Leandrinho é marcado pelo jogador surdo Miha Zupan (à esq.), no Brasil x Eslovênia no Mundial da Turquia

"O basquete é um esporte que o surdo pode jogar sem problema algum, como é o futebol, o vôlei. A comunicação é o único obstáculo. O que não impede que eles joguem contra pessoas que escutam plenamente", explica.

"Essa socialização já fez com que exista uma evolução enorme no relacionamento que eles têm com o mundo. Muitos deles não se comunicam em casa e, na escola, com muito pouca gente. No basquete, não, são 15, 20 se falando. Alguns que eram muito quietos, agora não param de falar", conta, orgulhoso.

HISTÓRICO

Recentemente, dois atletas surdos jogaram entre os melhores profissionais do mundo.

Na NBA (liga norte-americana de basquete), sem grande sucesso, o pivô americano Lance Allred jogou três partidas pelo Cleveland Cavaliers em 2008.

No último Mundial de basquete, disputado na Turquia, este ano, a Eslovênia contou com Miha Zupan.

"Acredito que um ou dois desses jogadores surdos [que ele treina no Canadá] podem jogar em equipes universitárias em breve. E mais, creio que podemos ver um deles como profissional em alguns anos", opina o brasileiro técnico da seleção canadense.

 

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