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A minha Copa: Xico Sá conta como viu o Mundial de 70; ou como não viu

Editoria de Arte/Folhapress
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Uma multidão na praça da cidade de Nova Olinda, diante de uma pequena TV em preto e branco de 14 polegadas –se muito. Raro aparelho naquele pedaço do Cariri cearense. Só chuvisco. Os radinhos de pilha ajudavam a tentar entender aquela miragem no meio do deserto semiárido. Era a Copa de 1970 que nos chegava com muito Bombril na antena no tempo de um Brasil a válvulas.

Com oito anos incompletos, só fui entender direito o que se passava meses depois, pelas figurinhas do chicletes Adams que reproduziam, em um desenho lógico e didático, todos os gols brasileiros. O que mais me impressionou foi a fisionomia assombrada do goleiro da Inglaterra, Gordon Banks, diante do tirambaço à queima-roupa de Jairzinho. Parecia a imagem do "Pânico" do pintor Edvard Munch.

Saía de caminhão, com a família e a turma do Sítio das Cobras, zona rural de Santana do Cariri (CE), para Nova Olinda, a 18 km do nosso rancho. Com aquela festa toda da meninada, quem precisava ver o jogo direito? Só fui conhecer, à vera, a cara de cada jogador brasileiro uns dois meses depois, quando o revendedor dos cigarros da Souza Cruz levou de brinde um pôster para meu pai colar na parede da sua bodega.

Onze homens e um destino. Ficava horas observando os jogadores. Para cada um, eu via um sósia ali na nossa vizinhança. Tostão era o Gerdau Barbosa, que encantava a todos com os perfumezinhos que fabricava em pleno sertão –havia feito um curso em São Paulo. Daudete, irmão de Gerdau, era o Félix –até jogar de goleiro, jogava.

Pelé era Corisco, um vendedor de laranjas da Bahia na vila de Aratatamas, Assaré (CE). Gérson eram todos os carecas da região. Carlos Alberto Torres era o meu tio xará Alberto Novais. Everaldo era Expedito, meu grande amigo de infância, hoje funcionário da gráfica da editora Abril em São Paulo. Clodoaldo era o Roseno, vizinho de Corisco, santista e bom de bola, pelo que me recordo.

Rivellino era Chiquinho Inglês, bigode grosso do Açude da Telha. Jair eram quase todos da família Bruno...

Uma Copa em que o entorno, a brincadeira, a fantasia, o não-ver o jogo foi mais importante que tudo. Essa herança está no tipo de crônica esportiva que pratico. Mais vale a passionalidade, o exagero e a imaginação do que o esquema tático –tentei escapar de dizer que essa religião tem nome e se chama rodriguianismo doentio.

Naquela tevezinha caixa de fósforo no meio da praça, creio que obra do prefeito Jeremias Pereira (Arena I), não vi o melhor de Pelé: os não-gols que marcariam a presença real no México.

Os não-gols mais bonitos que 90% dos tentos marcados de lá até hoje. O goleiro tcheco adiantado...

Por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo, como diria o narrador esportivo Geraldo José de Almeida àquela época. O drible de beleza platônica, sem nem triscar na bola, no goleiro uruguaio Mazurkiewicz –minha nossa Senhora de Guadalupe, aquilo valeu por um Maracanazo.

E a defesa do Banks, na cabeçada do negão? Essa não decifrei no chuvisco da TV, mas as rádios repetiram tanto a locução que sonhei lá na minha rede colorida no quarto atrás da bodega do meu velho pai Francisco. Quando vi o videoteipe... Era igualzinho.

"A Copa do Mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa." A canção ficou grudada até hoje.
Essa outra também: "Noventa milhões em ação, pra frente Brasil..." Os milicos arrepiavam nos porões da tortura, e eu –inocente, puro e besta, matuto sertanejo– só achava engraçado e bonito o sotaque gaúcho do ditador Emílio Garrastazu Médici. O sotaque do ditador no rádio.

Minha avó Merandolina, de Águas Belas (PE), descendente dos índios fulniôs, dizia: "O homem vai falar, meu netinho". Pura fábula dos tempos de chumbo.

A minha Copa é a Copa que mal vi, a Copa dos não-gols do Pelé, mas minha primeira ideia de futebol como festa e congraçamento. Lá em Nova Olinda estava o mundo todo dos nossos arredores. Era tanta gente para uma tevezinha tão minúscula e chuviscada. Bastava dizer Pelé para ganhar um sorriso –como acontece com um brasileiro perdido no deserto das Arábias ou em uma savana africana. Como esquecer?

Inocentemente, eu era um dos 90 milhões em ação, como na música da trilha sonora, e nem sabia.

O texto de Xico Sá, colunista da Folha, integra a série "A Minha Copa", publicada aos domingos. Leia os textos anteriores em www.folha.com.br/folhanacopa

Alberto Ferreira - 21.jun.70
 Pelé comemora gol contra a Itália, na final da Copa de 70
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