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O espanhol: "Filhos de Caim"

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Maracanã. O templo dos templos, o estádio mais sagrado que existe para um futebolista, o sonho para todo menino que deseja se tornar um astro do futebol. No mesmo gramado em que 64 anos atrás a Espanha derrotou o Chile com gols de Basora e Zarra, em 19 de julho de 1950, diante de apenas 16 mil espectadores, a Espanha agora joga seu destino nesta Copa do Mundo. Como então, se trata da segunda partida da fase de grupos, mas aí terminam as semelhanças.

Se em 1950 a Espanha vinha de uma vitória histórica sobre a Inglaterra, com o gol de Zarra, cuja imagem decora a entrada do vestiário da Ciudad del Fútbol de Las Rozas [a Granja Comary espanhola], agora chega depois de uma hecatombe histórica: a derrota por cinco a um diante da Holanda.

Machucada de todos os lados, com as feridas abertas e uma hemorragia descontrolada, a seleção espanhola busca um refúgio que permita que se recomponha minimamente para encarar um adversário que farejou o sangue, o medo, e sabe que vive um momento que permitiria mudar uma história na qual jamais conseguiu vencer os espanhóis.

Foram cinco dias de caras sérias, de esforços de recuperação através da palavra. Os veteranos assumiram o controle para definir que, se chegar o fim da melhor geração na história do futebol espanhol, que seja de cabeça erguida, algo que não aconteceu contra a Holanda.

A Espanha é a seleção da Copa que conta com mais jogadores que acumulam 100 ou mais partidas pela equipe nacional: Casillas (155), Xavi (133), Sergio Ramos (118), Xabi Alonso (112) e Fernando Torres (108). Foram eles que tomaram a palavra, desde o primeiro momento.

Casillas, em um vestiário silencioso e em estado de choque, foi o primeiro a falar. E o fez ainda no vestiário da Arena Fonte Nova, em Salvador. Pediu desculpas por seus erros, e também um esforço extra para acreditar, para sair de um atoleiro do qual há como escapar; pediu, acima de tudo, que a equipe não se renda.

Muito se falou das comparações entre o sucedido quatro anos atrás, quando a Espanha perdeu para a Suíça na primeira partida da Copa, mas terminou campeã do mundo. No entanto, as sensações são muito distintas. Em 2010, a derrota por um a zero aconteceu ao final de uma partida totalmente dominada pelos comandados de Vicente del Bosque, com muitos gols perdidos e com um gol adversário estranho, repleto de rebotes e em jogada iniciada em impedimento.

Na manhã seguinte, no café, Xavi foi o primeiro a conversar com o treinador. "Mister, assisti de novo ao jogo, e jogamos tão mal", disse o meio-campista ao treinador.

Pouco a pouco, voz a voz, a equipe foi crescendo, e a mensagem de que aquilo havia sido um acidente chegou a todos. Era verdade. A Espanha havia jogado para ganhar mas não conseguiu. No entanto, o caminho à frente parecia aberto. Agora existem dúvidas, porque o estrago dos cinco a um afeta todos os aspectos da equipe, o futebolístico e o emocional.

Em 2010, depois da vitória contra Honduras transcorreram cinco dias antes do novo jogo contra a Chile, dias em que a equipe sentiu o peso da possibilidade de voltar para casa, um peso diferente do que ela sente hoje, como expressa Fernando Torres. "Não há como comparar. Em 2010 não tínhamos nada, e agora somos os detentores da Copa, temos a estrela do campeão na camisa", disse o atacante.

Na África do Sul, a tensão era palpável, no ônibus que conduziu a equipe ao estádio de Pretória, com um silêncio que afetou os jogadores mais jovens. Ao chegar ao vestiário, em sua preleção final, del Bosque encarou os jogadores e lhes disse algo que não esperavam. "Vamos jogar tranquilos. Somos futebolistas, não soldados que precisem salvar a pátria. Se perdermos, nada acontece, voltamos para casa e vamos descansar".

Xavi ficou boquiaberto. "Porra! Algo com certeza vai acontecer, vão querer nos matar", ele pensou. Mesmo del Bosque sabia que essa mensagem servia apenas para tranquilizar os jogadores, e que ela não correspondia à verdade. Seu telefone estava repleto de recados de apoio, entre as quais o de um ilustre jornalista que em lugar de desejar sorte ao time havia escrito que, em caso de derrota, del Bosque deveria se demitir e que a maioria dos jogadores da seleção deveriam sair da equipe em companhia dele.

Agora, a tensão é ainda maior. O treinador espanhol, como sempre faz, tratou de digeri-la com normalidade, com serenidade, com calma. A situação é extrema e tudo foi colocado sob suspeita. Até o estilo de jogo. Se há algo que serviu bem à Espanha nesses últimos seis anos foi sua forma de jogar, mas o golpe diante dos holandeses fez tremer as fundações do edifício.

Del Bosque repetiu a fórmula e sua mensagem trata de aplacar os ânimos daqueles que veem na seleção a explicação ou o refúgio para os males da pátria. "Não éramos os salvadores da pátria, antes, e não estamos pisando na bandeira, agora", assegurou o técnico espanhol diante do clima que a derrota criou em alguns setores da Espanha.

Porque esta seleção espanhola fez história, mas não só no sentido de haver vencido como nunca, e sim por ter exposto a face de um país de Caim, uma nação que parece incapaz de desfrutar daquilo que tem. Imagino que para um brasileiro seja muito difícil compreender que existem espanhóis, se bem que não muitos, na verdade, que desejam a derrota de sua seleção, que vivem presos às batalhas dos times pelos quais torcem e são incapazes de perceber que os jogadores deixam em casa as camisas de suas equipes quando chegam à Ciudad del Fútbol de Las Rozas para treinar com a seleção nacional.

Basta um passeio pelas redes sociais para compreender esse fenômeno, resultado daquilo que os espanhóis apelidaram de "rally dos clássicos", a sucessão de confrontos entre Real Madrid e Barcelona em 2011, que causou um confronto tão aberto que a saúde da seleção terminou em coma.

Um telefonema de Casillas a Xavi, os esforços de ambos e o esforço de Sergio Ramos e de Sergio Busquets salvaram aquela situação, mas existem pessoas que, ainda hoje, não perdoam supostas traições (um termo ridículo, não importa que ponto de vista o observador assuma) da parte dos jogadores ou do treinador, por este ter sido parte da história do Real Madrid (onde trabalhou 30 anos) mas ter elogiado e defendido jogadores do Barcelona.

A derrota contra a Holanda voltou a expor a Espanha filha de Caim, a Espanha das facas afiadas. Ninguém precisou explicar aos jogadores que havia gente os esperando com espingardas carregadas, que no dia em que voltassem a perder, de acordo com a lei da vida e do esporte, seriam atacados brutalmente. Todos sabiam estar sob vigilância.

Pouco importam os títulos, as defesas de Iker, o cérebro de Xavi, o gol de Iniesta. O futebol não tem memória, e isso é assim e vem sendo assim desde que a primeira bola rolou. Mas na Espanha, nesta Espanha, a situação vai além. Tudo é tão volátil que uma vitória sobre o Chile recolheria o leite derramado, pelo menos até que chegue o dia da partida contra a Austrália em Curitiba, em 24 de junho.

E se não houver vitória? E se a Espanha estiver condenada a voltar para casa já desde a segunda partida? É evidente que a crítica precisa ser profunda, mas isso jamais deveria vir acompanhado da falta de respeito, da agressividade e dos insultos tão frequentes nos últimos anos em determinados foros da sociedade espanhola. Na Real Federação Espanhola de Futebol, não existe dúvida alguma de que o caminho seguido foi o correto, ainda que o Mundial seja um fracasso para a Espanha.

A cara de Ángel María Villar era um poema, no final da partida contra a Holanda. O presidente da federação espanhola de futebol não conseguia ocultar a magnitude do golpe sofrido, um dos maiores desde 1998, quando ele assumiu o comando do futebol do país.

A decepção nada tinha a ver com o caminho percorrido. Antes do começo da Copa, sem que passasse pela cabeça de ninguém que o primeiro jogo pudesse terminar em semelhante descalabro, a mensagem de Villar era clara. "Del Bosque, se assim desejar, continuará a ser o nosso técnico, aconteça o que acontecer". A derrota por cinco a um diante da Holanda, e o surgimento do fantasma de uma eliminação na primeira fase, o que não acontece com a Espanha desde a Copa da França em 1998, não mudou em nada essa posição. "Nossa nau capitânia", é a frase de cabeceira daqueles que comandam o futebol espanhol.

Nem uma derrota para o Chile no Maracanã e uma eliminação da Copa em apenas duas partidas abalariam a manutenção de del Bosque no cargo pela federação.

Jorge Pérez, o secretário geral da federação, foi o responsável por convencer del Bosque a continuar no posto depois do Mundial do Brasil, depois que o treinador havia quase decidido encerrar sua carreira, e agora não acontecerá uma demissão por um possível fracasso, porque não é essa a política da organização. Na federação espanhola, a prioridade é ter as seleções do país classificadas para os grandes torneios, como a Eurocopa e a Copa do Mundo —e a Espanha só ficou de fora da Copa de 1978 e da Euro de 1992. Quando a Espanha se classificou para a Copa do Brasil, em novembro do ano passado, foi assinada uma extensão do contrato de del Bosque até 2016.

Villar entende que del Bosque é parte do patrimônio do futebol espanhol, e que demonstrou de sobra ser o técnico ideal para o comando da seleção. Quando o técnico nascido em Salamanca expressou a ideia de deixar o posto ou se aposentar no final da Copa do Brasil, a federação considerou alguns outros nomes e a conclusão foi clara. "Ninguém como Vicente".

Com essa premissa estabelecida, o futuro de del Bosque será decidido por ele mesmo. O treinador quer continuar, comandar a mudança de gerações que começará no amistoso de 4 de setembro em Paris e nas eliminatórias para a Eurocopa de 2016, na França.

Mas del Bosque não está disposto a permitir que sua figura se converta em um foco de tensão na equipe. É mais que possível que, caso isso aconteça, del Bosque entregue o cargo.

"Não tenho apego ao posto", ele repete. É tão certo que isso aconteça quanto a resposta que ele receberá da federação. "Vá para casa, descanse, e nos vemos em setembro".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Editoria de Arte/Folhapress
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