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Cônsul da Colômbia em Fortaleza chega ao jogo após longa travessia

Eduardo Knapp/Folhapress
O cônsul Maurício, com a mulher e os filhos
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No bolso do paletó, o colombiano Carlos Maurício Durán Domínguez, 52 anos, promete esconder um gorro com as cores do seu país. Ele prepara-se para recepcionar o presidente, Juan Manuel Santos, que decretou "tarde cívica" e anunciou um bate-volta para assistir ao jogo Brasil x Colômbia, no Castelão. "Se a Colômbia fizer gol, vou colocar o gorro na cabeça rapidinho", garante. "Me deu sorte nos outros jogos." Quem o conhece não duvida que o gorro estará lá, fazendo volume no terno chique, primeiro. E, depois, enfiado no cocuruto.

Maurício, como prefere ser chamado, é o cônsul honorário da Colômbia em Fortaleza. É também dentista na capital cearense. Desde que o país se classificou, para as quartas de final, seus dias viraram uma gincana. Os da secretária Lucilene Oliveira, 47, também. Ninguém esperava que a Colômbia fosse tão longe. De repente, era preciso arrumar voo e hospedagem para ilustres figuras e também para os parentes. Foram muitas as vezes em que teve de largar o paciente na cadeira e atender a ligação da Presidência. "Que importante tá nosso dentista", divertiam-se os clientes, a boca bem aberta.

Os telefones não paravam de tocar, segundo ele mais de 100 ligações por dia. Com demandas alarmantes. "A mãe e a 'novia' de James (o artilheiro do time) estão sem lugar para ficar", anunciava a voz do outro lado da linha. "Sim, senhora embaixadora, vou providenciar", logo em seguida. Em outro telefonema alguém oferecia ingresso para o jogo a R$2.000, "na internet tá 12 mil". Quando não era uma paciente: "Vai torcer pela Colômbia? Mas como, o Brasil fez tanto por você e agora vai virar as costas pro país?". A campainha da casa apitava, eram policiais colombianos chegando de surpresa para uma reunião estratégica. Até a noite de quinta-feira (3), o cônsul só não tinha conseguido garantir a sua entrada no Castelão: ou assistirá ao jogo do lado do presidente ou terá de se contentar com um restaurante.

É a secretária Lucilene quem diz: "Você pensa numa pessoa que é uma 'figura'. É o doutor Maurício. Já era ligado no 220, agora então!". Lucilene tem razão. Maurício é mesmo uma figura. De camisa da Colômbia, um crucifixo no pescoço, um anel de Cristo crucificado numa mão. O estereótipo da religiosidade latina no corpo, mas também algumas marcas mais mundanas. Adora perfume (oferece o pescoço para a repórter cheirar "o Azzaro"), óculos de sol, relógios grandes e sapatos "estilosos". Um dos pares preferidos é o preto, afunilando na ponta, mistura de camurça e couro imitando a pele de um réptil. Diz muito "muchacho". Mas, de repente, exclama em cearencês: "Vixe Maria!".

O gorro da sorte é um presente da mãe, dona Conchita, 80 anos, que mandou os três filhos estudarem no Brasil para virarem "doutor". O pai, Victor Manuel, 80, é de Aracataca, o mesmo pueblo de Gabriel García Márquez. "A Macondo de Cem Anos de Solidão", explica um dos primos hospedados para o jogo. Quando Maurício ligava, pedindo passagem de volta para Medellín, dona Conchita era dura: "Fica aí e vira doutor". Deu certo. Nesta sexta-feira (4), dona Conchita e don Victor pretendem estar no avião presidencial, aterrissando para assistir com o filho ao que esperam ser a vitória da Colômbia, o futebol cumprindo seu destino como alegoria da vida.

Vão-se longe os tempos em que Maurício desembarcou no Brasil com o cabelo longo "dos latinos" e a cara espinhenta de seus 17 anos. Achava que estava chegando ao paraíso, mas o inferno logo se impôs. "Me perguntavam se eu era da família Escobar", conta, aludindo ao famoso narcotraficante Pablo Escobar. "A Colômbia era drogas, violência e atraso para os brasileiros". Hoje, não. "Me respeitam. O país virou um modelo para o mundo. E o futebol uma intersecção para que o Brasil e a Colômbia se conheçam."

Juan Manuel Santos, o presidente que prometeu estar presente hoje no Castelão, acabou de ser reeleito, com a proposta de continuar o processo de negociação com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Mas foi uma vitória apertada contra Óscar Iván Zuluaga, candidato do ex-presidente Álvaro Uribe e sua linha dura. A Colômbia é um país ainda com enormes fraturas, mas ficou para trás o tempo em que os jogadores da seleção entravam em campo sob o estigma do "narcofutebol". A estrela do time, James Rodríguez, e sua geração encarnam essa mudança.

Para os colombianos, este não é "um" jogo, mas "o" jogo. A vida de Maurício no Brasil conta um pedaço dessa história, entre o imigrante colombiano estigmatizado e o "doutor" que atende crianças brasileiras pobres nos sábados de folga. "Sofri muito preconceito. Já quis namorar uma menina, o pai proibiu. Nas lojas, não aceitavam meu cheque porque tinha sobrenome colombiano", lembra. Depois de se formar em Odontologia no Recife, mudou-se para Fortaleza para fazer pós-graduação. Entregava pizzas para se sustentar. Um dia foi tirado do elevador social e despachado para o de serviço. Seu patrão foi um dos primeiros pacientes. Quando Maurício passava equilibrando uma pizza, ia logo dizendo: "Esse aqui é o doutor Maurício, meu dentista". Começou então a virar o doutor que a mãe tanto queria.

Pelo Brasil foi se apaixonando. Primeiro pela palavra "saudade". "É a mais linda da língua portuguesa, mas não existe no espanhol, e eu não sabia o que era", conta. "Um dia ouvi o Chico Buarque dizendo que saudade é a dor de uma mãe arrumando o quarto do filho que já morreu. Então, entendi. E descobri que era isso que eu sentia. Corri a ligar para casa pedindo para voltar."

Com os dias, começou a querer ficar. Com os dias e com Luci, a brasileira com quem se casou 24 anos atrás. Quando ficou claro que o adversário agora seria o Brasil, a família teve uma conversa. Cada um ficou livre para seguir seu coração. Carlos, 20 anos, espera "que vença o melhor". Luci e as gêmeas, Shara e Clara, 23, pintaram a unha do dedo de uma mão com as cores da bandeira da Colômbia e a da outra mão com as cores do Brasil. Maria Ester, 12, é toda Brasil: uma unha verde, outra amarela, outra azul. Bem, quase toda, porque o alvo de seus suspiros não é Neymar, mas o colombiano James. Ringo, o cachorro, parece pender para a Colômbia, já foi surpreendido dando latidos irados em gols do Brasil.

Para Luci, o fato de a camisa de ambos os times ser amarela soou como um trunfo. Ela então encomendou uma blusa para o jogo, com as celebradas rendas do Ceará nas mangas, toda amarelinha. Mas a Colômbia vai jogar de vermelho, e ela se descobriu num enrosco diplomático. "Acho que vou botar uma calça vermelha", diz.

Dos três filhos de dona Conchita que vieram ao Brasil para virar doutor, apenas Maurício está vivo. O do meio morreu de câncer no cérebro. O mais velho foi assassinado por um assaltante, depois de voltar a Medellín. Tinha virado doutor. Foi degolado com seu próprio bisturi. A mãe encontrou o corpo, entrou em depressão profunda. Maurício narra um desfecho mítico para a tragédia. Num encontro de católicos carismáticos, a mãe pediu: "Rezem por mim, porque não encontro a paz. Meu filho foi assassinado há três meses". O assassino teria se levantado na multidão: "Sou o assassino do seu filho e vim lhe pedir perdão". Dona Conchita o perdoou.

"Amo a minha terra como amo a minha mãe", diz Maurício. "O Brasil é o que sinto pela minha mulher e por meus filhos". No jogo de hoje o amor que vai se impor é o primeiro. Faz 20 anos que o jogador Andrés Escobar foi assassinado, dias depois de ter feito um gol contra na Copa dos Estados Unidos. Suspeitava-se de que a morte fora encomendada pelo narcotráfico, que teria perdido dinheiro nas apostas. Mas a hipótese ainda não foi provada. Para dona Conchita e seu filho sobrevivente, como para milhões de colombianos, independentemente do resultado, o jogo de hoje é futebol em sua expressão mais profunda. É travessia.

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