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Eliane Brum: O insustentável peso da camisa

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Acabou. Mas quando? Nos 7x1, na goleada histórica da Alemanha no Mineirão? Ou no Mané Garrincha, em Brasília, o nome do estádio que é apenas mais uma ironia a revelar a distância entre o gênio que pensava com os pés e os pés que se estranhavam com a bola, como se quisessem se livrar dela o mais rapidamente possível, na disputa com os holandeses. Ou neste domingo (13), a ausência do Brasil no Maracanã como uma presença.

Talvez, entre tantos finais possíveis, o adeus tenha sido aos poucos. E tenha começado quando tudo ainda era silêncio, e a predestinação, assim como a vitória, era lançada como um dado da natureza. Esquecia-se do peso da camisa. Que em 2014 se tornou insustentável.

Primeiro, era para ter Copa. Quando o país foi escolhido para sediar o evento máximo do futebol, o Brasil, que carregava essa sina de ser um verbo conjugado no futuro, era anunciado como aquele que finalmente alcançara o presente substantivo, com a ascensão de milhões no que se chamou de "nova classe média" e outras marcas apregoadas mundo afora.

A Copa era sonhada como uma esquina onde identidade e destino encontrariam sua síntese, um final-começo apoteótico para um país que até então parecia condenado ao quase. Essa Copa morreu antes de nascer, quando os protestos de junho deram notícia de que algo se rompeu e escapava.

Dominic Ebenbichler/Reuters
O atacante Neymar no gramado após derrota da seleção brasileira para a Holanda
O atacante Neymar no gramado após derrota da seleção brasileira para a Holanda

E então, na "pátria em chuteiras", parte da população passou a gritar: "Não vai ter copa". Um grito imprevisto, desestabilizador no imaginário nacional. Talvez, agora que tudo acabou, para quem sabe poder começar de outro jeito, se possa dizer que, vista de dentro, teve uma Copa e não teve outra Copa.

A gasta frase de Nelson Rodrigues, uma das tantas sínteses precisas do cronista, a de que "a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana", tem cabimento de pele. Apenas que não mais ser ou não ser –mas ser e não ser, ao mesmo tempo.

Nas últimas semanas, meses, políticos, intelectuais e jornalistas precisaram buscar nos cronistas do passado, Nelson em especial, a interpretação do futebol e das brasilidades. Ajustar ao hoje o que dizia mais de um país que, se contém aquele que foi, já não é e não pode mais ser o que era.

É óbvio que os grandes intérpretes do Brasil sempre dirão sobre ele. Assim como é óbvio que suas interpretações não podem ser apenas transpostas, ignorando o movimento um tanto caótico da história.

O fato de ser preciso meramente repetir hoje os achados de ontem mostra o quanto estamos diante de algo que é e que está, mas que ainda não pôde ser encontrado, sequer nomeado. Essa Copa no Brasil, tão rica em sentidos, é pobre em narrativas.

Ainda há nela, no que se refere ao país e ao futebol, muito mais de indizível e de "destecido", desfeito. Possivelmente porque este seja um momento de descosimento, também das palavras.

Reeditou-se o "trauma do Maracanazo", na Copa de 1950, quando o Brasil perdeu a final para o Uruguai, para botar em curso uma narrativa que pudesse encobrir a fragilidade do discurso. Criar um movimento épico, sem que ele pudesse ser sustentado, porque a derrota pouco ecoa hoje nos corações e mentes da maioria da população, que guarda Copas mais recentes na memória.

Ainda que ecoasse, seria buscar uma correção impossível da história, já que aquele Brasil não mais existe. Como já não existe Barbosa, o goleiro negro que encarnou não a fratura da derrota, mas a da cisão de uma sociedade em que a abolição da escravatura ainda hoje não foi completada. Nessa sociedade, o negro, ligado historicamente pelo racismo vigente a uma certa "instabilidade emocional", era o culpado.

O Brasil que agora existe já não se sabe o que é. O não saber uma possibilidade, mais do que uma perda. Nem mesmo o Maracanã, onde a Alemanha venceu a Argentina num jogo aguerrido, é o Maracanã. Um nome e um mito dizendo-se no vazio de uma arquitetura que já é outra em mais de um sentido.

Quando a seleção sofreu a goleada histórica, buscou-se editar um novo trauma: a superação do anterior não pela redenção, mas pela enormidade do novo. Mas não há trauma. O que há é um movimento espasmódico, o assombro de hoje se sobrepondo ao de ontem antes de ser sepultado pelo de amanhã, na falsa sensação de que algo se move enquanto velhas forças subjacentes se reacomodam.

É inevitável testemunhar a entrada da Argentina no Maracanã sem lembrar do comercial em que Daniel Alves diz a Lionel Messi, seu colega no Barcelona, pelo celular: "O bicho vai pegar aqui no Brasil!". Pegou mesmo. E pegou de tantas maneiras diferentes.

O nome da campanha é "O Sonho: tudo ou nada". A narrativa publicitária não pode criar realidade, só imagem que se desfaz. Essa Copa revelou com rara profundidade, para quem se importasse em ver, a cisão entre o mercado como tentativa de controlar a vida pelo desejo de consumo –e a vida que se impõe como a transgressão que é, consumindo-se na voragem de desejos incontroláveis.

Depois da derrota para a Holanda, na disputa pelo terceiro lugar, Thiago Silva e David Luiz disseram, na zona mista –um tanto atarantados, o olhar perdido– que o saldo positivo dessa Copa foi reacender a chama da torcida brasileira pela seleção.

Qi Heng/Xinhua
O zagueiro David Luiz lamenta um dos sete gols da seleção alemã
O zagueiro David Luiz lamenta um dos sete gols da seleção alemã

Seguiam acreditando –ou apenas repetindo– que a imagem podia ainda se reagrupar sem rasgos e pedaços faltantes. Bastaria para isso uma correção. Assumiam-na, "como homens", mas não pareciam perceber que essa derrota dava a notícia assombrosa de uma falta.

Que imagens, ao contrário de pessoas, que suportam e carregam suas marcas, se desfazem. Essa é a tragédia dos meninos da seleção. Em algum momento se acreditaram completos, um produto perfeito, não sujeito à vida –e, portanto, não sujeito ao futebol.

Contra os prognósticos de muitos, a Copa saiu. Para uma parcela significativa de brasileiros, a um custo alto demais, com o qual será preciso se haver. Com a polícia reprimindo manifestantes, prendendo sem qualquer justificativa aceitável numa sociedade democrática.

Com um rastro de dezenas de milhares de desabrigados e pelo menos dois mortos de um viaduto que desabou. Com estádios caríssimos destinados ao vazio. Com tudo isso, a Copa saiu. O futebol brasileiro desfez-se.

Há muito a camisa amarela pesa. Nesta Copa, não só pelas suas cinco estrelas. Talvez tenha sido atribuído àqueles meninos uma missão mais impossível do que ganhar o jogo com o time que (não) formavam.

Pelos tantos interesses envolvidos, alguns deles conflitantes entre si, apostava-se que eles pudessem reunir o que já não pode ser reunido. Mas nem todo o esforço da TV aberta, Globo em particular, foi capaz de forjar um espetáculo maior do que a realidade.

Nesse sentido, Neymar, David Luiz, Thiago Silva e todos os outros são personagens ainda mais trágicos. Aos meninos da seleção brasileira parece ter sido dada a missão não de jogar futebol, mas de reunir os cacos de uma identidade "brasileira" que, se um dia existiu, pode ter terminado de ruir em junho de 2013.

Eles não podiam –ninguém pode– juntar pedaços que não mais se encaixam. Desmoronaram em arena pública, como cordeiros sacrificados. A mercê de forças poderosas que, se ajudam a movimentar, delas são também joguetes.

Algo gira em falso. Talvez seja preciso encarar que o Brasil possa não ser mais o "país do futebol" –e que isso não é necessariamente uma tragédia. Ainda que, mais uma vez, seja o futebol que, com sua enorme potência, exponha e revire as tensões brasileiras.

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