A ÁGUA ARDENTE Cachaça, o destilado de cana usado para manter os escravos laboriosos nos engenhos, nas lavouras e minas, virou símbolo da cultura popular


Da lida no canavial ao papo de botequim


MONICA DUARTE DANTAS
especial para a Folha


Água-que-passarinho-não-bebe”, “engasga-gato”, “lágrima-de-virgem”, “levanta-velho”, “maria-teimosa”, “pela-goela”, “sete-virtudes”, “urina-de-santo” são alguns dos vários nomes pelos quais a cachaça, bebida tão brasileira, é conhecida no país. Sua história remonta às primeiras décadas da ocupação. Sua importância, além de cultural, é econômica e política: o beber e produzir cachaça invadiu todas as esferas da vida privada e pública brasileira.

Nos idos do século 17, os jesuítas da Bahia já produziam a então chamada “agoa ardente” de cana. Demoraria um pouco para que se tornasse conhecida como cachaça, termo que originalmente designava, nos velhos engenhos, apenas a espuma derivada da primeira fervura do sumo da cana. Era então bebida de escravos.

Nos dias úmidos e frios, o duro trabalho nos canaviais tornava essencial a ingestão de uma dose da “dengosa”. Era também excelente lenitivo para cativos adoentados.

O trabalho nas Minas também não se fazia sem a “branquinha”, que mantinha aquecidos os escravos que ficavam horas mergulhados nos rios, lidando com as batéias. Dizia-se que podiam passar mal-vestidos e mal-alimentados, mas jamais sem um gole de aguardente. Sua situação de gênero de primeira necessidade era tão evidente que, em 1720, na vila de Pitangui, uma revolta quase eclodiu quando o governo tentou dificultar seu comércio.

A cachaça não só auxiliava a produção, ao manter os escravos laboriosos, como era essencial para a existência daquela força de trabalho. Se o tráfico com a África dependia primordialmente do escambo do tabaco, apoiava-se também na troca da aguardente brasileira. Tanto assim que, em 1649, quando proibida a fabricação do “vinho do mel da cana”, por atrapalhar o comércio do vinho português, houve grande reação de todos os que se beneficiavam do comércio de escravos.

Até 1661, quando o veto foi levantado, a produção permaneceu estável, contando inclusive com a conivência daqueles encarregados da administração colonial.

O interesse na produção da “imaculada”, destinada inicialmente a acalmar os ânimos dos escravos e a permitir o afluxo constante dessa população, foi aos poucos ganhando novos horizontes. A bebida não mais servia só para aquecer os cativos na lida, mas a qualquer um que viajasse pelo país quando o tempo era inclemente. A facilidade da produção e seus baixos custos faziam dela um gênero democrático. Não era necessário um grande engenho para produzi-la, bastando uma engenhoca rudimentar. Em qualquer encruzilhada, havia sempre alguém disposto a vender a “teimosa” para os transeuntes.

No século 19, sua produção e consumo já estavam tão disseminados e identificados com a terra que a cachaça tornou-se, então, sinônimo de brasilidade. Na Revolução Pernambucana de 1817, bem como nas lutas de Independência, brindar com vinho ou outra bebida qualquer significava alinhar-se com o lado português.

A situação tornou-se tão extrema que, em certos lugares, não beber era considerado pouco patriótico. Nas guerras Cisplatina, do Paraguai e de Canudos, recomendava-se a ingestão de “januária” com pólvora, um santo remédio para a falta de coragem.

A cachaça, surgida como remédio contra o frio e a umidade, foi aos poucos ganhando outros usos. A farmacopéia popular, misturando-a a todo tipo de ervas, recomenda seu uso para um sem número de doenças: picadas de cobra, reumatismo, sífilis, maleita e outras. Até mesmo para o vício da bebida dizia-se ser ela eficaz: ao bebedor renitente, nada como aguardente com caldo de coruja ou areia de cemitério.

A “moça-branca” não ficaria de fora de um dos aspectos mais importantes da vida do brasileiro, a religião. No candomblé sua presença é constante, especialmente nos despachos.

O catolicismo não foi menos influenciado pela “pindaíba”. O folclorista Melo Morais Filho registrou sua presença em um auto do ciclo de Natal, chamado “Baile da Aguardente”. São Benedito era cantado nas trovas populares como o “santo preto, que bebe cachaça e ronca no peito”. A invenção da “friinha” chegou a ser creditada a são Pedro. Santo Onofre, são Plácido, são Martinho e são Jorge, desgostosos de estarem alheios ao ritual da cachaça, tornaram-se dedicados padroeiros.

Se as misturas da “geribita” podiam curar tudo, conseguiram também apagar o estigma com que nascera, de ser bebida de pobre. O licor de jenipapo, bebida digna dos sobrados, fazia-se pela combinação da fruta com o “espírito”. No século 19, em casa de um engenheiro inglês, servia-se uma mistura de aguardente, açúcar, limão, canela e vinho do Porto.

Os bares do Rio, no começo do século 20, acostumaram-se a servir “uma patrícia com botões dourados”, ou seja, “parati” com gotas de Bitter ou Fernet. Não à toa, hoje, bar que se preze serve da boa caipirinha: a deliciosa mistura de cachaça, limão e açúcar.

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