A RAINHA DO POVO Filha de uma moça virgem, segundo os tupis, alimento é fundamental na mesa dos brasileiros, que a apelidaram de ‘pão-de-pobre’


Cultura da raiz mandioca
molda e sustenta o país


PRISCILA LAMBERT
da Reportagem Local

FÁBIO GUIBU
da Agência Folha, em Escada e Ribeirão


“O pobre come farinha de mandioca três vezes ao dia. É café misturado com farinha de manhã, farinha com carne-seca ou ovo no almoço e farinha com tapioca ou outro complemento à noite”, diz Pedro Luiz de Matos, pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

Justifica-se, aí, um dos nomes da mandioca: pão-de-pobre. Na boca do povo, a raiz tem muitos outros, que variam às vezes de acordo com a espécie, outras de acordo com a região: uaipi, aipim, castelinha, macaxeira, maniva.

O nome mais corrente é de origem tupi. Um mito entre os índios conta que a filha de um chefe engravidou virgem, e dela nasceu a menina Mani. Morta após um ano, de seu túmulo, numa oca, surgiu um arbusto cujas raízes serviriam de alimento.

Apesar de seu uso estar em declínio desde os anos 70, é a farinha de mandioca, ainda, a mais consumida no país. Nas áreas rurais, é comum a existência de casas de farinha _um teto simples, para abrigar os equipamentos para a sua produção.

Base da cozinha típica da Zona da Mata, em Pernambuco, a farinha ainda é fabricada nessas velhas instalações, erguidas em meio a canaviais. Nas fábricas mais antigas, lavradores realizam todo o processo industrial de forma artesanal. O equipamento é de madeira ou barro. O trabalho comunitário é a base da produção.

É o que acontece, por exemplo, no engenho Camaçari, zona rural de Escada, a 70 km de Recife. No local, o agricultor aposentado Severino Maximiniano Gomes, 74, mantém uma das casas de farinha mais rústicas da região. Gomes ainda usa uma roda de madeira movida a manivela para girar o caititu, peça que mói a mandioca, colhida e descascada pelos próprios agricultores.

Para fazer a farinha, os lavradores usam a mandioca brava, mais venenosa. A macaxeira (mandioca mansa ou doce) é usada para outros pratos.

Após a moagem, a pasta é prensada por duas toras ligadas por parafusos esculpidos em troncos. O processo livra o produto da manipueira, líquido que contém o veneno da mandioca. A massa passa pela urupema, peneira feita com cipó, e segue depois para um forno redondo parecido com uma grande frigideira, de tijolos de barro. Fica lá por duas horas, mexida com um rodo de pau.

300 kg, R$ 90
Para fazer 300 kg de farinha, os lavradores precisam de uma tonelada de mandioca. O processo de fabricação leva cerca de 12 horas e ocupa até dez pessoas. Quase nada do que é fabricado nas casas de farinha artesanais é destinado à comercialização. Em março, os 300 kg renderiam por volta R$ 90.

Quem produz paga o dono da casa de farinha com o próprio alimento, e o preço depende da quantidade obtida. Normalmente, quem empresta a casa recebe 10% da produção. “A farinha fica mais para o gasto próprio mesmo”, disse o dono das instalações. Segundo ele, uma família de cinco pessoas consome pelo menos 20 kg do produto por mês.

“A gente come misturado com feijão, com carne, com macarrão ou puro mesmo, quando não tem mais nada”, disse o agricultor.

“De vez em quando, a mulher faz também um pirão (farinha com caldo de carne ou peixe), um pé-de-moleque (bolinho com castanha e coco embrulhado em folha de bananeira e assado em forno de barro) ou uma paçoca (farinha pilada com carne-seca).” Além desses pratos, os agricultores usam ainda a goma extraída do líquido obtido com a prensagem da massa para fazer tapioca, mingau, bolos e beiju, alimento com sabor semelhante ao do miolo de pão torrado.

“A farinha é um produto tipicamente indígena, que até hoje não é usado na Europa”, diz o historiador e editor Leonardo Dantas, acrescentando que “nem Portugal, que tem uma cozinha tão próxima da do Brasil, a utiliza”.

No início do século 19, a mandioca era medida de riqueza e argumento pró-Independência. O líder político Cipriano Barata, em defesa da separação do Brasil de Portugal, discursou no Porto: “O Brasil pode manter-se independente da metrópole e até da Europa; tem farinha para alimentar-se e algodão para vestir-se”.

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